Esta fala foi apresentada no I Colóquio de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. E é o resumo de um artigo de mesmo título.
TEMOS
VAGA PARA LITERATURA:
Quando
a Literatura entra na pauta das políticas públicas,
o
que fazer?
Carmélia
Aragão1
Recentemente, ao
concluir a leitura do livro da professora iraniana Azar Nafisi, Lendo
Lolita em Teerã: memória de uma resistência literária2,
publicado em 2003, nos Estados Unidos, e traduzido no ano seguinte
aqui no Brasil, resolvi mudar o tom inicial deste trabalho e
complementar o subtítulo com uma pergunta: o que fazer?
Profª. Nafisi
conta em seu livro o quanto lhe foi vital a existência da literatura
durante os 18 anos passados na República Islâmica do Irã,
implantada, em 1979. Proibida de ministrar aulas nas universidades de
Teerã, Nafisi criou um grupo de estudos secreto em sua casa formado
por sete alunas para poderem ler e estudar literatura de língua
inglesa. Como disse, parafraseando Nabokov: a criatividade é a
insubordinação em sua forma mais pura.
Outro exemplo de
resistência por meio da literatura veio-me dois anos antes quando
assisti à entrevista da ex-senadora da Colômbia, Ingrid Betancourt,
no período em que esteve no Brasil para divulgação de seu livro:
Não há silêncio que não termine
em 2010. Em o seu relato sobre a angústia vivida durante os seis
anos como refém das FARC, me chamou atenção ouvi-la dizer que, na
selva, tentava ocupar a cabeça com os poemas que havia memorizado
como os do poeta Neruda, que foi amigo de seu pai, tanto que o título
do livro é um verso do poeta chileno3.
Acredito que existam
muitas pessoas que vivam ou viveram em regime de exceção e que se
refugiaram em obras na literatura. Talvez por isso, tenha ouvido
várias vezes de alguns adultos e jovens, de forma impensada, talvez,
que a efervescência artística cultural de nosso país foi durante a
época da ditadura militar que teve início com o golpe de 64. Embora
essa afirmativa seja simplista e impensada, devido às condições
que nos levou a produzir arte/cultura nessa época, ela me faz
pensar, juntamente com os outros casos aqui citados, em Deleuze, no
prefácio de Crítica
e clínica
(1997) 4:
O mundo é um conjunto de
sintomas cuja doença se confunde com o homem. A literatura aparece,
então, como um empreendimento de saúde. [...] Qual saúde bastaria
para libertar a vida em toda parte onde esteja aprisionada pelo homem
e no homem, pelos organismos e gêneros e no interior deles? A frágil
saúde de Spinoza, enquanto dura, dá até o fim testemunho de uma
nova visão à passagem da qual ela se abre.
[DELEUZE: 1997,13-14]
Em julho de 2008,
após minha defesa de mestrado em literatura, fui convidada por um
amigo escritor e também mestre em Letras pela mesma Universidade
(UFC), para trabalhar na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará.
Queriam “ressuscitar” um projeto do ex-coordenador de políticas
do livro e de acervos, Fabiano dos Santos Piúba5
que, naquele momento, estava no MinC como diretor de Livro, Leitura e
Literatura/ atual DLLLB (acréscimo das bibliotecas). Era o Projeto
Agentes de Leitura do Ceará6.
Em 2005, o Estado do
Ceará havia criado o Fundo
Estadual de Combate à Pobreza/FECOP
com o objetivo de implantar projetos em diversas áreas como
tecnologia, educação e cultura nas regiões onde o IDH-M
era baixo. Foi então que surgiu o Projeto
Agentes de Leitura do Ceará
com idealização e execução do coordenador já citado, Fabiano dos
Santos, e também do professor Eduardo Loureiro. O projeto tinha a
operacionalização inicial baseada nos agentes de saúde. Para atuar
como agente
de leitura,
o projeto tinha em vista os jovens maiores de 18 anos que haviam
concluído Ensino Médio7
e com família portadora de NIS8.
Os selecionados passavam por um processo de formação, recebiam
uma bolsa para complementação de renda, e mais um acervo de 100
livros de literatura, uma mochila e uma bicicleta para visitar as 25
famílias por eles cadastradas nas comunidades onde atuariam,
acompanhando o processo leitor de cada uma dessas famílias: lendo
livros, emprestando-os, enfim, “formando leitores”.
Como ocupei o cargo
de assessoria administrativa no período de 2008 ao início de 2010 9
tive bastante contato com os gestores locais e com esses jovens
agentes. Um dia, enquanto atravessava atarefadamente o saguão do
auditório onde estava sendo realizado III
Encontro Estadual dos agentes de leitura do Ceará um
deles me parou e perguntou: e
nós, o que fazemos aqui?
Essa questão foi fundamental para que eu pudesse perceber nosso
posicionamento equivocado como gestores públicos que, nesse caso
específico, ainda era mais grave, pois tínhamos formação em
Letras, frente a esses “meninos”. Sim, havia algo de muito podre
na maneira como estávamos lidando com a Literatura, que afirmávamos
possuir poderes mágicos.
O fato é que a
questão posta por esse agente ecoou bastante na minha cabeça
durante o evento. E depois e ainda. E, dada a importância de estar
aqui com vocês, hoje. Dia 1ª de dezembro deste mês, pedi para ele
que me escrevesse sobre nosso encontro de dois anos atrás para que
vocês entendam o que acontecia:
Havia algo de muito
“engraçado” nas formações (encontros) do projeto Agentes de
Leitura do Ceará. Lembro, com saudosa nostalgia, da estrutura
montada em Fortaleza por ocasião de nossos encontros (formação,
bienal...)! Os hotéis suntuosos à beira-mar, os almoços e
jantares... em restaurantes luxuosos (aquilo sempre me trazia na
lembrança a estória da Alice no país das maravilhas...)! Aquilo
não era nosso mundo, de tão bom, beirava ao “estranho”. Aquela
supra-realidade nos causava euforia e igualmente um vazio. Faltava
alguma coisa mais. Afinal, que sentido tinha aquilo?
Foi quando
entendi que
[...] Nosso papel ativo se restringia lá, nas famílias visitadas,
que
quando tentávamos colocar em prática as “diretrizes”
construídas por nossos “superiores” e repassadas a nós nos
encontros na capital.
Não
tínhamos voz. Apesar de supor que tínhamos muito a dizer, não
havia oportunidade e/ou espaço, o microfone era privilégio dos
pseudo sabedores/definidores das práticas didático-pedagógicas que
deveríamos executar!
Recebíamos tudo
pronto em “envelopes” lacrados e frases afirmativas! Ora, afinal,
estávamos em processo de treinamento, o que poderíamos dizer, no
que poderíamos contribuir? Assim, muito ficou sufocado dentro de
nós, tínhamos muito a falar e a propor. Nada dissemos10.
No Brasil, a leitura
foi transformada em política de estado pela lei n° 10.753, de 30 de
outubro de 2003 que instituiu a Política
Nacional do Livro,
instrumento legal que autoriza o Poder Executivo a criar projetos de
incentivo a leitura e acesso ao livro. A regulamentação dessa lei
apresentou o Plano
Nacional do Livro e da Leitura-
PNLL e, com ele, as formas possíveis de executar as ações dessa
política. Com isso a
questão da leitura
deixa de pertencer apenas à Educação e passa a ser um projeto de
nação, podendo vincular-se às demais instâncias, como a Cultura.
Dentro dos
princípios norteadores do PNLL que, por sua vez, são baseados em
princípios identificados pela UNESCO como necessários para a
existência expressiva de leitores em um país, o texto
literário
aparece como a principal escolha para ser adotado nos trabalhos com a
leitura. No PNLL os motivos dessa escolha estão embasados por
Antônio Cândido:
a) A capacidade que
a literatura tem de atender à nossa imensa necessidade de ficção e
fantasia. b) Sua natureza essencialmente formativa, que afeta o
consciente e o inconsciente dos leitores de maneira bastante complexa
e dialética, como apropria vida em oposição ao caráter pedagógico
e doutrinador de outros textos; c) seu potencial de oferecer ao
leitor um conhecimento profundo do mundo, tal como faz, por outro
caminho a ciência.
[PNLL: 2007, 32]
Para chegarmos a
esse ponto, trinta e três anos antes, em 1979, com a intenção de
criar uma “economia ética”, o indiano Amarthya Sen fez uma
revisão dos critérios de avaliação de qualidade de vida, o IDH,
no campo da economia de desenvolvimento e da política internacional
que na época classificava os países em função do PIB. Para Sen
esse sistema de avaliação não priorizava elementos essenciais para
a vida humana, como a expectativa de vida, a mortalidade infantil, o
acesso à educação, a geração de emprego e a liberdade de
expressão. O economista escolheu o termo “desenvolvimento de
capacidades” para falar de uma série de opções oferecidas a uma
pessoa para que esta possa escolher a forma de vida que lhe é mais
significativa. Assim, o desenvolvimento das capacidades partiria dos
sujeitos humanos, diferenciando-se das concepções econômicas
estandardizadas, que não respeitavam as subjetividades.
Para
a elaboração dos fundamentos filosóficos do desenvolvimento das
capacidades, Sen contou com a parceria da filósofa norte-americana
Martha Nussbaum. Nussbaum, a partir de Aristóteles, resgata a
noção grega de excelência
humana (Arete),
que seria a necessidade de desenvolvimento pleno do homem e da vida
entendida como atividade (práxis).
Assim, tal como Aristóteles, a filósofa enumera as “capacidades
humanas básicas para que a vida do homem atinja sua excelência. São
elas: vida; saúde; integridade física; sentidos,
imaginação e pensamento; emoções;
razão prática; afiliação; outras espécies; jogo; e controle
sobre o próprio entorno.
É interessante
perceber que, mesmo se tratando de um discurso sobre economia que nos
parece uma ciência fechada, pode-se encontrar em meio à reavaliação
do IDH feita por Sen, o direito à imaginação
e ao pensamento
como um princípio básico para nosso desenvolvimento como seres
humanos plenos. Isso me faz pensar automaticamente em Literatura. E
esta, possuidora da natureza das Artes, portanto sem fins
obrigatórios, pode servir a todas as ciências, a todas as pessoas.
No que diz respeito
à filosofia política, Nussbaum aposta inteiramente na expansão das
“humanidades” como caminho para o desenvolvimento da democracia
no sentido de assegurar nosso direito à cidadania. No
livro Sin
Fines de Lucro: Por qué la democracia necessita de las humanidades
(2010)
diz que:
La
idea de la rentabilidad
convence a numerosos dirigentes de que la ciencia y la tecnología
son fundamentales para la salud de sus naciones no futuro. Não sou
contra que los países deban dejar de mejorar esos campos, me
preocupa que otras capacidades igualmente fundamentales (…)
Estas
capacidades se vinculan con las
artes y con las humanidades. Nos
referimos a la capacidad de desarrollar un pensamiento crítico; la
capacidad de transcender las lealtades nacionales como “ciudadanos
del mundo”; y por último la capacidad de imaginar con compasión
las dificultades del próximo.
[NUSSBAUM: 2010,
25-26]
Por esse motivo,
Nussbaum atribui à Literatura, um papel de destaque. No ensaio “La
imaginación literaria en la vida publica” (1995), a filósofa
desenvolve o “poesia pública” de Walt Whitman, que seria aquela
capaz de nos mostrar os conflitos entre os deveres do indivíduo
para consigo e seus deveres para com os outros.Cito:
La
literatura se centra en lo posible, invitando a sus lectores a
preguntase acerca de sí mismos. Aristóteles está en correcto. Al
contrario que en la mayoría de las obras históricas, las obras
literarias invitan el lector a ponerse en el lugar de gentes de muy
diversos tipos y a asumir sus experiencias. En los mismos modos en
cómo se dirigen a sus lectores imaginarios, transmiten la sensación
de que existen eslabones
de
posibilidades, de pelo al menos a un nivel muy general entre los
personajes y el lector. Las emociones y la imaginación del lector,
en consecuencia, permanecen muy activos, y es la naturaleza de esta
actividades y su relevancia para el pensamiento publico lo que me
interesa. (NUSBAUM:
1995,44-25)
Na defesa da
Literatura Nussbaum dá exemplos a partir do romance Tempos
Difíceis,
de Dickens e observa ainda que a personagem central do romance, o
avarento senhor Grangrid também tinha consciência que do ponto de
vista político econômico a imaginação literária seria algo
perigoso, pois levaria juízes, legisladores e gestores de bens
públicos a procurar saber sobre a qualidade de vida das pessoas, ou
seja, a
Literatura estimula a ação. A leitura é um ato político.
Percorrendo o
raciocínio exposto até aqui, vejo-me diante de um caminho repleto
de bifurcações. A primeira delas é que não vivemos em regime de
exceção como nos dois exemplos citados no início deste trabalho,
não nos encontramos na situação da professora Nafisi e suas alunas
sob a censura do regime islâmico. Muito menos exilados do mundo
numa selva como a ex-senadora Ingrid Betancout. Supomos que vivemos
em um país democrático que respeita, pelo menos teoricamente, as
diretrizes aqui expostas e que se esforça para melhorar cada vez
mais o seu IDH e, para isso, além das outras medidas necessárias,
desenvolve projetos como o
Agentes de Leitura,
fruto de uma política de estado de apoio à leitura com base em
textos literários. No entanto, parece controverso o lamento de
invisibilidade do agente Gilmar Oliveira, já que pretendemos seguir
uma ideia de justiça baseada no reconhecimento do outro, conforme
propõe a teoria das capacidades de Sen e Nussbaum. Haveria um embate
entre as mentes que pensam e as que executam esses projetos como
neste exemplo experienciado por mim?
Sim, temos vaga para
a Literatura, ou melhor, quando a Literatura entra na pauta das
políticas públicas: o que fazer?
BIBLIOGRAFIA
UTILIZADA:
CASTILHO
MARQUES NETO, José (org). PNLL-
Plano Nacional do livro e leitura: textos e história (2006-2010).
São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2010.
DELEUZE,
Gilles, Crítica
e Clínica.
Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1999.
NAFISI,
Azar, Lendo
Lolita em Teerã: memória de uma resistência literária.
Trad.
Fernando Esteves, Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
NUSBAUM,
Martha, “La imaginación literaria en la vida pública” In
ISEGORÍA:
Revista de Filosofía Moral y Política
nº 11, 1995, p.42-80.
________.
Las
fronteras de la justícia:
consideraciones sobre la exclusión.Barcelona: Ediciones Paidós
Ibérica, 2007.
________.
Sin
fines de lucro – Por qué la democracia necesita de las
humanidades.
Buenos Aires: Katz Editores, 2010.
1 Carmélia Aragão é aluna do curso de doutorado da PUC - Rio pelo programa de pós- graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. É também bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico/FUNCAP. Esta fala foi apresentada no I Colóquio de Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio. E é o resumo de um artigo de mesmo de mesmo nome.
2 NAFISI, Azar, Lendo Lolita em Teerã: memória de uma resistência literária. Trad. Fernando Esteves, Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
3 "Si no se saben mis palabras/ no dudes que soy el que fui./ No hay silencio que no termine./Cuando llegue el momento, espérame,/ y que sepan todos que llego/a la calle con mi violín"
4 DELEUZE, Gilles, Crítica e Clínica. Trad. Peter Pál Pelbart. São Paulo: Ed. 34, 1999.
5 Atualmente, Fabiano dos Santos Piúba está como diretor de Leitura, Escrita e Bibliotecas do CERLALC-UNESCO.
6 O modelo do Projeto Agentes de Leitura do Ceará foi adotado desde 2009 pelo MinC com o Programa Mais Cultura e ampliado para outros estados do Brasil do Norte, Nordeste, Sudeste e Sul sob a orientação pedagógica da Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio com direção da profª Eliana Yunes. Atualmente, a Colômbia estuda a possibilidade de implantação o mesmo modelo em seu território.
7 Uma das razões da migração da população nordestina jovem para os grandes centros urbanos de seus estados ou para o sul e o sudeste do país, o antigo êxodo rural, foi/ é a falta de perspectiva de trabalho desses jovens em seus municípios. (N.A)
8 Número do Indicador Social que a família recebe ao se cadastrar nos programas de assistência às famílias de baixa renda do Governo Federal. Benefício foi criado durante o governo do presidente Lula em 2003. Exemplo: Bolsa Família.
9 A assessoria administrativa do projeto consistia em dar entrada e acompanhar mensalmente o processo de pagamento das bolsas dos agentes, (o que me fez memorizar quase todos os nomes de agentes por município); redigir e acompanhar os termos de referência para licitações (junto com as coordenações responsáveis: administração e jurídica); desenvolver logística de distribuição de acervo, bicicletas, entre outras coisas.
10 Excerto do depoimento de Gilmar Rodrigues de Oliveira, Agente de Leitura de 2008 a 2010, hoje, professor de História da rede municipal de ensino, em Alcântaras-CE. Depoimento colhido via email em 01/12/12. Grifo meu.