POLÍTICAS
PÚBLICAS E LITERATURA
(OU QUESTÕES DE (RE)PRESENTAÇÃO)
Resumo:
A
partir do conceito de representação
(o ato de assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra) e re-presentação (o ato de performance ou
encenação da fala) tratado por Spivak
(2010) com o objetivo de pensarmos a Literatura como promotora de espaços dialógicos no combate à
subalternização. Contextualizaremos a proposta de Spivak com o debate levantado
por Martha Nussbaum (1995) sobre a importância da imaginação literária na vida
pública, que traz a literatura como ferramenta principal para o desenvolvimento
político e social.
Palavras-chaves:
Literatura; (re) presentação; subalternidade; espaço dialógico; imaginação.
Resumé:
À partir
de la notion de représentation (l'acte de prendre la
place d'un autre dans le sens politique du terme) et la re-présentation (l'acte
de performance ou de la mise en scène de la parole) abordée par Spivak (2010)
afin de réfléchir sur la littérature comme élément promoteur d'espaces
dialogiques dans la lutte contre la subordination. On fera une
contextualisation de la pensée de Spivak avec le débat soulevé par Martha
Nussbaum (1995) sur l'importance de l'imagination littéraire dans la vie
publique, ce qui met en évidence la littérature comme le principal outil de
développement politique et social.
Mots-clés:
Littérature; (re)présentation; subordination;
espace dialogique; imagination
Não
foi somente a discussão sobre a postura do intelectual levantada por Spivak no
livro (ou artigo) Pode o subalterno falar?(2010),
no original, Can the subaltern speak?
(1988), que me levou a procurá-la como teórica; a resposta que poderia advir
dessa questão, fez-me refletir como pesquisadora. Quem trabalha na área de
estudos culturais e pesquisa sobre minorias étnicas ou determinados grupos
postos à margem já se fez essa pergunta, como também já questionou seu próprio
lugar de fala ao lado dessas pessoas ou na frente da Academia. Tratarei aqui dessas questões e colocarei
minhas dúvidas e propostas. Mas antes, é preciso dizer que: não, o subalterno
não pode falar.
A
abordagem da subalternidade foi tratada no livro a partir da questão sacrifício
das viúvas na Índia, um ritual chamado sati.
Spivak descreve duas formas de discurso criadas em torno dessas mulheres
sacrificadas. O primeiro é opressão da própria tradição hindu que torna a
mulher um objeto do marido. O segundo está na literatura de língua inglesa, com
o olhar displicente homogeneizante acerca daqueles que não faziam parte da elite
colonizadora. Os nomes das viúvas sacrificadas, muitas vezes, não eram grafados
na pira do sacrifício, ou os poucos que foram, perderam-se na violência
epistêmica de uma tradução suja, virando um folclore sobre aqueles seres
exóticos. Para a autora, esses dois discursos formam uma parede onde se encerra
o subalterno, no caso, a viúva indiana que nunca pôde reivindicar seu lugar de
fala.
A
partir desta ilustração, Spivak alerta para o perigo de se construir o outro e
o subalterno apenas como objeto de conhecimento por parte dos intelectuais que
almejam meramente falar pelo outro. Ela critica a postura do intelectual do
“terceiro mundo” que recorre às matrizes teóricas, no caso, europeia e, ao
fazer isso, é “cúmplice”
do discurso hegemônico, pois as estruturas de poder e opressão vão sendo apenas
reproduzidas, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição,
um espaço onde possa falar, principalmente, no qual possa ser ouvido.
Antes
de utilizar o exemplo do sati, Spivak
faz uma longa crítica à matriz europeia francesa, especificamente, a Foucault e
Deleuze.
“Argumentarei em
favor dessa conclusão considerando um texto de dois grandes expoentes dessa
crítica: ‘Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles
Deleuze’. [...] ambos os autores ignoram sistematicamente a questão da
ideologia e seu próprio envolvimento na história intelectual e econômica.”
(SPIVAK:
2012, 26-27).
A
Índia e o Brasil hoje estão juntos na classificação econômica, fazem parte do
bloco dos “países emergentes” com grande potencial de consumo: os BRICS. No passado,
também fomos colonizados e também sofremos perdas irreparáveis. No entanto, as consequências do colonialismo na Índia ou na China, que são
culturas já estabelecidas e têm seus fundamentos baseados em várias hierarquias
e tradições, ocorreram de uma forma que leva Spivak, hoje, a traçar uma linha
de pensamento sociológico ou filosófico para desenvolver sua abordagem da subalternidade
pertencente ao contexto que lhe cabe como hindu. No Brasil, o processo de
colonização misturou de tal forma, colonizador e colonizado, a partir do
extermínio das populações locais, por exemplo, e, cujas consequências, por
muitas razões, não nos levaram a uma abordagem da subalternidade hoje, da mesma
forma que Spivak e a crítica pós-colonial.
Como
falei no início, não foi somente a crítica sobre a postura do intelectual
diante do Outro que me chamou no texto de Spivak, foi principalmente a
distinção do termo “representação”. A autora nos traz dois sentidos dessa
palavra em alemão – Vetretung e Darstellung: o primeiro, se refere ao
ato de assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra, e o segundo, a
uma visão estética que prefigura o ato de performance ou encenação. Na análise
de Spivak, há uma relação intrínseca entre o “falar por” e “re-presentar”,
pois, em ambos os casos, a representação é um ato de fala em que há a
pressuposição de um falante e de um ouvinte. Com isso, Spivak aponta para a
tarefa do intelectual pós-colonial que deve ser a de criar espaços por meio dos
quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele o faça, possa ser
ouvido. Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar
contra a subalternidade.
Na
arte, mais especificamente, na Literatura, os espaços dialógicos, de
representação e re-presentação
emergem de forma mais clara. A voz dos seres colocados à margem surge impressa
em livros, folhetos, vídeos, reivindicando, ou seja, traçando sua identidade,
seu modo de ver e viver o mundo ao redor, redescrevendo-se.
De imediato, lembro-me de Férrez e do livro Capão
do Diabo (2000). De uma forma ou de outra, a Literatura pode colocá-lo em
um espaço de diálogo onde ele fala e é ouvido, onde ele representa a voz da
periferia de São Paulo e, ao mesmo tempo, coloca-a em cena (re-presentando-a).
No
entanto, no dia 08 de outubro, na abertura da Feira do livro de Frankfurt, a
maior feira literária do mundo, o escritor brasileiro Luiz Ruffato chocou as
autoridades locais e a delegação brasileira presente no evento com um duro
discurso sobre as desigualdades do Brasil. Entre tantos exemplos e algumas
experiências, a fala de Ruffato, além de ser polemicamente recente, também se
direciona ao ponto onde quero chegar para justificar o título deste texto e cujo
tema é Literatura e políticas públicas.
Primeiramente,
o escritor se coloca como alguém que produz literatura na periferia do mundo,
em um país cuja língua não tem grande alcance, e que, ironicamente, escreve
para um número, cada vez mais, restrito de leitores dentro de seu próprio
território. Ruffato chama atenção para nossa incapacidade de nos colocar no
lugar do outro, diz que vivemos o dilema do ser humano que é o de lidar com a
dicotomia eu/outro. Uma vez que a afirmação de nossa subjetividade se verifica
através do reconhecimento do outro, é a alteridade que nos confere o sentido de
existir. Porém o outro é também aquele que pode nos aniquilar. E, mais à
frente, no último parágrafo,
o autor toca no ponto, no qual muitos dos que estão aqui, que escolheram o
caminho não tão economicamente rentável das humanidades acredita: no papel
transformador da literatura. De origem humilde, o escritor poderia ter o mesmo
destino dos que estavam com ele, o de permanecer, mas encontrou na literatura a
possibilidade de um espaço dialógico pela sua capacidade de autocriação.
“Eu acredito, talvez até ingenuamente,
no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um
pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim,
balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de
lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os
livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e
sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.
Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao
individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar
o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que
nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o
negro, o indígena, a mulher, o homossexual– como tentativa de nos preservar,
esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos
à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso
escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se
de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino
último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a
felicidade na Terra. Aqui e agora”.
No
entanto, com exemplos citados de Luiz Ruffato ou de Férrez podemos nos
perguntar: e se levássemos esse “poder transformador” da Literatura para todos?
Em primeiro lugar, não vamos pensar que ao entramos em contato com a literatura
todos seremos escritores, poetas ou filósofos e assim, construiríamos um mundo
melhor. Em segundo lugar, não podemos acreditar cegamente em um “poder
transformador”, nos tornaríamos fundamentalistas. Como se disséssemos, parodiando
o maravilhoso Augusto Matraga: “a literatura tem que mudar as pessoas nem que
seja a porrete”. Quer dizer, a Literatura passaria a servir a um projeto, a um
único objetivo, erro comentido pelos regimes totalitários e cujas consequências
são desastrosas.
O
que podemos fazer é uma aposta
na qual podemos ganhar ou não. Porque
Literatura é arte. E como toda obra de arte, ela é uma experiência estética
tanto para quem faz como para quem recebe. E, contraditoriamente, por não ter
nenhum objetivo, por “não servir para nada”, que ela rompe a mecânica do
cotidiano, criando espaço à contingência, para o poder da autocriação, por meio
de algo que pode nos parecer banal: a imaginação.
Leio há algum tempo sobre
políticas de desenvolvimento humano. A política
de desenvolvimento humano, segundo o próprio idealizador, Amartya Sen, foi pensada a
fim de propiciar o exercício das liberdades, dando aos indivíduos a
possibilidade de escolher a vida que gostaria de levar. Ou seja: uma sociedade
que investe em educação, cultura, saúde, segurança, permite ao indivíduo a
capacidade de pensar por si e de se empenhar por uma vida boa. E a literatura,
onde apostamos nossas fichas, encontra lugar neste paradigma.
A teoria de Sen pensa
a cultura de duas formas. A primeira como um setor cultural que agrupa as
atividades e produtos derivados dessas atividades artísticas e criativas. Ele
ressalta que a criatividade é vista como a principal alternativa para o
desenvolvimento humano e social. Sen discorda da ideia dos paradigmas econômicos
anteriores que valorizavam a criatividade voltada apenas para a economia e a
tecnologia. A segunda forma de pensar a cultura, para ele, está sob a perspectiva
socioantropológica de que a cultura não se restringe apenas a produção
artística, mas representa também um conjunto de valores que estão presentes em
todas as interações sociais. Quer dizer: “Toda atividade humana é a expressão
de uma cultura que a atravessa e é esta que nos permite dar sentido e valor às
atividades humanas em termos relativos”.
Para Martha Nussbaum, filósofa norte-americana e companheira de Sen em sua
abordagem das capacidades. Ela acredita que seria necessária uma
lista de funcionamentos ou de propriedades essenciais que, juntamente com Sen,
transformaram-se na lista das “capacidades humanas básicas” que, resumidamente,
são: vida; saúde; integridade física; sentidos, imaginação e pensamento;
emoções; razão prática; afiliação; outras espécies; jogo; e controle sobre o
seu entorno.
Segundo Nussbaum investir
nas humanidades é investir em seres humanos, homens e mulheres, capazes de
refletir sobre seu papel como cidadão.
Nussbaum aposta na imaginação como a capacidade que devemos desenvolver
para criar esses indivíduos. Porque a imaginação, como capacidade, move-nos a pensar a partir do lugar do
outro, ajuda a sermos um leitor de vidas, compreendendo emoções, angústias,
aspirações, desejos do outro em determinadas situações. É dessa forma que
podemos tirar a Literatura da esfera privada e levá-la para a esfera pública.
Portanto, ao reconhecer a imaginação como uma capacidade
humana básica, deve-se trabalhar para que todos possam usufruir dela, da mesma
forma que a saúde é também uma capacidade humana básica e se trabalha na implementação
de políticas públicas de acesso a programas de medicina preventiva, por
exemplo. No caso da imaginação são as políticas públicas de acesso ao livro, à
leitura literária, a cultura, tudo que possa estimulá-la. Porque só assim
poderemos ouvir vozes dissonantes como o discurso de Luiz Ruffato e a voz de
tantas outras pessoas que conhecemos, que estão ao nosso lado sem tribuna, sem
microfone, plateia, mas que se colocam em cena.
Para acessar:
http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano5_01/ano5_01.pdf
BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:
CALDER, Gideon. Rorty
e a Redescrição. Trad. Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP,
2006.
CHAVEL, Simone. “L'utilité
sociale des humanités”in
http://www.laviedesidees.fr/L-utilite-sociale-des-humanites.html, 01/06/2013.
GUARÍN,
Sergio. “Reflexiones sobre indicadores de leitura” in texto produzindo a
pedido do CELALC em 04/09/2012.
________.
Las
fronteras de la justícia:
consideraciones sobre la exclusión.Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007.
MAUSS, Marcel. Ensaio
sobre a Dádiva. Trad. Antônio Felipe Marques. Edições 70: Lisboa, 2008.
SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de
Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa –Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010
“O
artigo ‘Pode o Subalterno falar? ’, foi publicado primeiramente em 1985, no
periódico Wedge, com subtítulo
“Especulações sobre o sacrifício das viúvas”, recebeu notória repercussão,
principalmente após ter sido publicado, em 1998, na coletânea de artigos
intitulada Marxism and Interpretation of
Culture (...)”. (ALMEIDA, Sandra Regina Goulart de. In SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de
Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa –Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010; p. 12)
“Diante
da possibilidade de o intelectual ser cúmplice na persistente constituição do
Outro como a sombra do Eu [Self], uma
possibilidade de prática política para o intelectual seria por a economia sobre
rasura, para perceber como o fator econômico é tão irredutível quanto
reinscrito no texto social.” (SPIVAK: 2012, 59-60).
O termo Aposta aqui
pertence ao contexto utilizado por Marcel Mauss em Ensaio sobre a Dádiva.
Para ele sem a aposta, não existiria o dom e, portanto, não haveria sacrifício,
gratuidade, generosidade e, muito menos, liberdade.
GUARÍN, Sergio. “Reflexiones
sobre indicadores de leitura” in texto produzindo a pedido do CELALC em
04/09/2012.
CHAVEL, Simone. “L'utilité
sociale des humanités” in
http://www.laviedesidees.fr/L-utilite-sociale-des-humanites.html, 01/06/2013.
Tradução minha de NUSSBAUM, Martha. Las
fronteras de la justícia: consideraciones sobre la exclusión.
Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007.