Hoje pela manhã, talvez eu
tivesse oito ou nove anos. Escutei sua voz. Ela veio vindo. O sol cor de rosa
entrava pelas telhas. Eu sabia como ele estava lá fora, mas eu queria dormir.
Mais um pouco. Veio o cheiro do café. O bater da caneca de alumínio. Você ria.
Não era só você. Era o riso da mãe. O riso do tio. O tio que cheirava a motor e
a poeira da estrada de terra. Da casa velha que não vivi. Hoje pela manhã,
quando abri os olhos. Era você. Tenho certeza.
CHICO BUARQUE , OS JOVENS INFRATORES DA COLONIA BERRO, ANTES QUE O MURO DESABE SOBRE AS INTERTEXTUALIDADES DE
CÁLICE POR CRIOLO E ALGUMAS PALAVRAS PARA MEU AMOR.
Para Marcos e Helena.
O quanto Chico Buarque representa para
nós. É inegável. Mas às vezes, o velho novo Chico me parece muito chato. Me
aborrece. Não pelo artista em si, mas pelo séquito que o segue. Chico se tornou
artigo de luxo. E para muito poucos. Já faz alguns anos que fui a um show dele,
na plateia, no fundão, porque um primo meu – médico – pôde me ajudar a pagar o
ingresso. Era só cheiro de uísque e perfume francês. Além da gritaria dassocialiteshistéricas. Não lembro mais o nome da
casa de show onde Chico se apresentou – nem sei se existe ainda. Mas
ficava num bairro bem crítico de Fortaleza-CE – de quem
sempre recebo péssimas notícias desde que nos separamos em 2009 – Aliás,
não se consegue chegar ao título de 7ª capital mais violenta do mundo, de
uma hora pra outra, há que se ter muito empenho do poder público – Mas,
voltando ao assunto: o velho novo Chico cantou músicas novas, à época, e
algumas canções do Chico jovem. Nada muito relevante.Por que o que quero falar vem exatamente
neste momento no fim do show. Quando deixamos a segurança dos muros do clube.
Do lado de fora, não éramos mais que ratinhos brancos observados pelas luzes do
feroz gato que era aquele bairro. Estava instaurado o desespero para buscar o
carro no estacionamento. Antes que. Confesso que senti muito medo. Ainda hoje
tenho. Tanto medo. E muitas vezes, evito sair à rua, de dia, de noite, sozinha.
E quando o faço, é sempre correndo. Antes que.
Ponderei muito, quando Helena, minha
orientadora daqui, me propôs uma investigação junto à ONG ProCul – os uruguaios
se riem muito dessa sigla – mas tamanho foi meu nervosismo e seriedade que
nem me atentei para o escatológico – e lhe devo ter
enviado muitos emails com mil justificativas. Até que ela, finalmente,
escreveu:Tú
no vas a entrar a la cárcel.Sim, a ONG trabalha com menores em
privação de liberdade na Colônia Berro, aqui em Montevidéu. Ela marcou uma
entrevista com o Mario Villagrán, um dos fundadores.
Desde que “políticas públicas” passou a
fazer parte do meu vocabulário, só tenho me deparado com esse muro grande e
cinzento que nos encerra. A todos. Aos que, como eu, querem viver em paz,
tranquilos e livres. Aos que por algum motivo, sempre ignorado por nós, tiveram
que ser encerrados nele, para o bem de todos. E durante a pesquisa que fazia para qualificação, ainda no Rio, no início do ano, dois fatos que
me chocaram bastante vieram à tona na grande mídia: o vídeo dos presos
decapitados durante uma rebelião na Penitenciária de Pedrinhas-MA; e a foto do
jovem negro amarrado ao poste pelos justiceiros da classe média carioca
residente no bairro do Flamengo. Esses dois acontecimentos acenderam nos
brasileiros comuns de classe média – estrato social ao qual pertenço e, por
isso, acompanho – a antiga discussão: devemos ou não nos preocupar com a
barbárie, afinal, a matança ocorreu entre presos, na maioria, pretos e pobres
tal qual o jovem que amarraram ao poste.
Uma coisa é você dizer que faz
DOUTORADO nas mesas de congressos, nas salas de visita, pros amigos da sua mãe.
É você dizer que estudapolíticas
públicasque envolvem aleituracom ênfase notexto literário. A outra
coisa vem logo em seguida. Todos se olham – inclusive você mesmo – e se
perguntam: Mas para quê?
Tenho me deparado teorias brilhantes
acerca depolíticas
públicas. Tenho conhecido, ou pessoalmente ou por meio de textos, pessoas
com história de vida inteiramente dedicada ao Outro. Seja no poder público, na
Academia, no asfalto, no morro, nas quebradas, no sertão e, o que mais me
espanta, é que elas me respondem, sem que eu pergunte, “para quê?”. E a
resposta nunca é dita verbal e literalmente, em um idioma qualquer. Mas simplesmente
respondem.
Da conversa com Mário, ontem, mesmo sob o
jargão de quem trabalha imerso no sistema penal, embora não fazendo parte dele. E me dizia “para quê” cada vez que buscava o ar para entabular a nossa
maratona de perguntas. Helena e eu nos olhávamos cúmplices, com eurekas nos
olhos,encaixando nossas
investigações teóricas as suas palavras pulsantes. Um músico de meia-idade,
cansado, muito cansado, mas ainda rindo e se emocionando, ao recontar aquelas
histórias de quem vive todo dia, lado a lado, com os meninos e meninas, encarcerados na
Colonia Berro.
No entanto, o que eu consigo responder
para mim? Até onde acredito no que digo a mim mesma? Nesse percurso, uma jovem,
menor de idade, usuária de crack, sozinha, ou acompanhada, assassinou meu
sogro. A pessoa com quem divido minha vida perdeu o pai. Assim. O mais irônico
é que foi o Marcos, meu namorado, quem me mostrou o texto sobre a morte do
traficante Marcinho VP, emCabeça
de Porco, e me chamou atenção para a forma como o professor Luiz Eduardo
Soares, no livro, transformava-o em Márcio Amaro de Oliveira, um homem de
trinta e poucos anos, que apesar de ter cometidos crimes horríveis, era uma
pessoa que tinha algo a dizer, mas não disse, por não poder transgredira
uma única lei inviolável: não serás outro (para que eu permaneça o que sou).
Sempre ouvi Marcos a
falar, com muita poesia, sobre Rorty e aredescrição.
Ela é algo como um direito ou uma capacidade que temos de nos recriar a partir da
linguagem, a partir da literatura, mudando assim, a forma de vermos o mundo ou
o mundo nos vê. É o que faz Luiz Eduardo ao chamar Márcio para o diálogo. Para
que ele e nós tivéssemos a chance de redescrever
aquela situação de ódio. Mas não conversamos sobre isso. Não sobreredescrição. Mas sobre essa
dor, sobre a perda de seu pai, sobre essa morte tão inexplicável como a dor que
sente agora. E que nunca vou saber como é. E me ponho ao seu lado, como sempre,
mas um pouco afastada, para não doer. Por cuidado e por medo. E,
por mais que eu tente, não consigo enxergar essa jovem sob um horizonte
redescrito.
Por isso, e outras tantas coisas que não consigo escrever aqui, que não é fácil
ouvir todos os dias esse resposta que continuo a buscar. Não porque a ignoro. De
forma alguma. Foi na conversa com Mario que me lembrei de todas essas coisas–presente ou passado–
Inclusive, foi ele quem me fez lembrar o Chico hoje, o Chico jovem daÓpera do Malandropara que eu tivesse uma vaga ideia
de como tinha sido amurgaque ele havia montado com os jovens
infratores e que, ainda por cima, levou um prêmio em um festival demurgas, aqui no Uruguai. Na
hora, tive vontade de falar desse show do novo velho Chico que fui, da chatice
que são associaliteshistéricas e do final, quando saímos
todos correndo a procurar os carros, antes que.
No entanto, o que contei a Mário
foi outra história, a de um lugar igualmente estranho e petrificante, onde de
um lado, na margem esquerda de um rio, há uma biblioteca pública, mas as pessoas,
do outro lado, da margem direita, moradoras de um bairro marginalizado, talvez
não pudessem entrar. Por que não é bem o rio que corta o acesso a esse
prédio público. É esse ar de espanto quando fazemos e olhamos ao redor. Antes
que. O muro está logo ali.
***
Chico Buarque e o rapper Criolo.
Ainda sobre o
Chico, resolvi transcrever para que, depois quem sabe, em outro momento, eu
possa falar sobre as intertextualidades de Cálice
e a discussão política que Criolo fez ao atualizar/ homenagear a letra do Chico
com um rap, também chamado Cálice. E tem também, a resposta do Chico juntando as duas versões.
Vídeo:
Criolo:
Como ir pro
trabalho sem levar um tiro?/Voltar pra casa sem levar um tiro?/ Se às 3h da
matina tem alguém que frita/ E é capaz de tudo pra manter sua brisa?// Os
saraus tiveram que invadir os botecos/ Pois biblioteca não é lugar de poesia/
Biblioteca tinha que ter silêncio/E uma gente que se acha assim muito sabida//
Há preconceito com o nordestino/ Há preconceito com o homem negro/ Há
preconceito com o analfabeto/Mas não há preconceito se um dos três for rico.//
A ditadura segue, meu amigo, Milton/ A repressão segue, meu amigo Chico/ Me
chamam Criolo, o meu berço é o rap/ Mas não existe fronteira pra minha poesia.//
Pai, afasta de mim a biqueira/ Pai, afasta
de mim as biate/ Pai, afasta de mim a cocaine/ Pois na quebrada escorre sangue.
Chico:
Gosto de ouvir o
rap/ o rap da rapaziada// Um dia vi uma parada assim no youtube/E disse: ‘quius’pariu,
parece o Cálice/ Aquela cantiga antiga minha e do Gil!/ Era se o camarada me
dissesse:/ Bem vindo ao Clube, Chicão, bem vindo ao Clube/ Valeu, Criolo Doido/
Evoé, jovem artista!/ Palmas pro refrão do Doido, o rapper paulista:// “Pai,
afasta de mim a biqueira/ Pai, afasta de mim as biate/ Pai, afasta de mim a
cocaine/ Pois na quebrada escorre sangue”// Pai, afasta de mim esse cálice/
Pai, afasta de mim esse cálice/ Pai, afasta de mim esse cálice/
de vinho tinto de sangue.
Ângelo e Otávio em Buenos Aires.
Arquivo surrupiado do facebook.
Me perdoem.
Otávio e Ângelo. Conheci-os no hostel. E necessariamente nesta ordem. Era agosto. Noite fria de desesperar. Otávio tocava e cantava ao violão: "Como se fosse a primavera", uma versão dele próprio. E Ângelo, carioca da gema, gostava de músicas nordestinas. Luiz Gonzaga, Lenine, Geraldo Azevedo. Seguiram viagem. Não sei se já chegaram ao Brasil. Hoje, a primavera começou aqui. Lembrei muito de vocês. E cantei.
Quem lhe disse que eu era Riso sempre e nunca pranto? Como se fosse a primavera Não sou tanto No entanto, que espiritual Você me dar uma rosa De seu rosal principal
Há no Brasil, ou pelo menos entre
minha gente, a expressão “como se fosse da cozinha” para identificar que alguém
é amigo íntimo. Talvez Javier não saiba. Mas desconfio que deixei o status de
cliente. Na semana passada por duas vezes. Entrei no restaurante e estava
totalmente escuro. Achei que poderia estar presa no tempo como uma louca. Ou
que Javier não havia colocado a placa de cerre.
Não estava louca. Ele me gritou da mesa ao fundo onde comia com os empregados. No te vajas, Carmelia, no esta cerrado. É que já eram umas três da tarde, embora ele
fechasse às quatro, não havia mais entrado ninguém e estavam comendo. Dois rapazes
jovens e uma moça. O cozinheiro, o ajudante de cozinha, garçonete e o dono.
Almoçamos juntos. Todos. Dois dias depois, não lembro bem, consegui chegar no
horário maior movimentado da casa. Até senti alívio em não ser notada. Se não
fosse, Paco, o ajudante, ter colocado no som Por
enquanto na voz da Cássia Eller. Do balcão, ele me sinalizava na frente dos
outros. Ri. Eu só poderia rir e agradecer. Conclusão: se não “sou
da cozinha”, pelo menos a cozinha quer me adotar.
Este lugar
possui o ruído de todos os lugares por onde passei. É um apartamento de um
cômodo apenas, nos fundos, na planta baixa, cercado de muros. Ele possui a
dimensão particular aos sonhos; não precisa de porta para entrar, estrada para
andar, nem escada para subir. Neste lugar tudo existe ao mesmo tempo. Quando
cai a noite, escuto meu pai a procurar a comida interdita nos armários. Ouço os
passos das freiras pelos corredores a verificar as luzes e o nosso sono. Aqui, os objetos caem na mesma frequência que
os gatos correm pelos cômodos a derrubar os frascos de perfume, os jarros de
flores, os livros das estantes. Não creio que sejam essas quatro paredes
brancas e solitárias de objetos. Não creio que sejam a posição dos móveis, os
poucos que repartem o ambiente. Creio que seja o silêncio que tudo isso é capaz
de provocar. Ou o único quadro exposto na parede. Uma telefonista congelada
usando um enorme chapéu com plumas a pedir only
3 minutes, please. Mas ela nunca fala.
Fui andar. Esticar as pernas. No caminho atravesso a Av. Sarmiento. De longe, avistei o Hostel, minha tumultuada casa da primeira semana. Talvez nem lembrem mais de mim, as pessoas tem memória curta. Na saída do supermercado, encontro Erika, a colombiana, que logo se pôs me perguntar pelas coisas como se fossem ontem. Ia ao hostel ver Eugenia. E me fui. As pessoas não são como um amontoado de coisas na nossa memória, como para Funes. As pessoas vivem em nossa memória. Hoje, comi salada com atum (que nunca gostei). Por coincidência (ou não) levava morangos, mostarda e alface. Nos juntamos e comemos. Esse é o momento do preparo. O americano Arns ajudou a bater o creme da sobremesa com "fresas". Dessa vez,peguei o celular de todo mundo. Assim, a gente vai mudando nossos olhos de dentro.
Faminta. Entrei
no restaurante. Encontrei a porta dos fundos semiaberta. Javier estava fumando.
Bati palmas. Não escutou.
_Javier, qué haces ahí?
_Yo que te pregunto!!! Cómo entraste?
_Por la puerta...- E pensei: ué, o lógico
não é entrar pela porta?
Olhei para trás.
Havia caminhando por um restaurante escuro com uma placa enorme na frente que
dizia: CERRADO. O mais intrigante é que o
señor se pôs nervoso como se tivesse sido pego de cuecas por alguém
completamente estranho. Sim, eu era a estranha. Completamente.
-Perdón... Pero, tengo hambre. Tomé solo el
desayuno por la mañana...
Javier me olhava
incrédulo. O restaurante fechado. Os empregados tinham ido embora. Atirou o
cigarro longe. E começou a falar com todos os fonemas que eu tinha aprendido na
aula de espanhol da Espanha. Javier era de Aragón,
de onde talvez tenham vindo meus antepassados. Bem, as informações que pude
extrair foram estas: A cozinha está
fechada. Não temos almoço. Não sei o que fazer.
Na verdade,
existe uma coisa que tenho aprendido desde o primeiro dia em que pisei em Montevideo: o uso da minha licença. É um tipo de licença que só é
concedida a crianças muito pequenas, velhos e estrangeiros. Por exemplo, como
andar na rua com roupas cujas cores não combinam, mas ninguém vai recriminar,
porque você é estrangeiro e talvez não saiba que está ridículo. Como no dia em
que, no Rio, encontrei um amigo argentino, um senhor de mais de 60 anos, muito
respeitável ator e diretor de teatro, vestido de terno e com uma “canga de
praia” enrolada no pescoço. Não uma
bufanda. Não uma echarpe. E mesmo
que todo artista seja excêntrico: “canga de praia” se usa na praia. Mas ninguém
se importou. Nem eu perguntei.
O que eu fazia a
Javier era exatamente o que eu fazia com a moça da loja de ferragens, e também
com a da lavanderia, a da imobiliária, sem esquecer o motorista de ônibus, o
recepcionista do hotel, o porteiro do prédio, todo e qualquer transeunte que me
atravessasse o caminho. Estava exercendo, até as últimas consequências, minha licença estrangeira. Em nada se parece
com o que li. Nem Sartre. Nem Camus. Nem Calvino. Nem Arenas perambulando pelas
ruas de Nova York. Nem Kafka. Nem Kristeva. Não é da língua que sinto falta. É
da vida que não ocorre. Saio em busca de tropeços, a catar pedaços, diálogos, e
a tentar fazer, desesperadamente, desses encontros, ao menos, uma licença poética. Para quem está ali, na
minha frente, e que depois retomará ao seu todo. O todo que me falta agora. Ou
para mim mesma.
Ao perceber que não
sairia de seu restaurante sem um pedaço de alface, Javier me levou até a mesa
onde costumo sentar todos os dias, ao lado da enorme janela de vidro que
ilumina o salão. No te muevas.Voltou
com uma empanada gallega. Fria de
geladeira. Hechuga, tomato, aceite, sal, pan, un vaso de água. Depois de me ver
devorar tudo, ainda trouxe café y postre.
_ Qué hiciste durante el dia para no comer?
_ Trabajava en mi presentación para el curso
que estoy haciendo en la Universid...
Ele riu. Não sei
se pela minha agitação de ter passado o dia visivelmente envolvida em pensamentos
abstratos ao ponto de esquecer-me de comer. Ou se pelo o espanhol que agora estou
transcrevendo e que, naquela situação, também lhe soava desastroso. Imagino que
se ria mesmo por lembrar que, um dia, uma pessoa também lhe oferecera um prato
de comida durante um súbito ataque de licença
estrangeira. Enfim. Cobrou-me menos que o habitual. Abriu a porta, tocou-me
o ombro e disse: Hasta mañana!
Na madrugada do dia 20, quando cheguei à Montevidéu, o avião não teve permissão de pouso. A viagem em si não é tão solitária, as luzes de outras cidades nos acompanham. Mas com a ordem da não aterrissagem, ficou escuro. Acho que sobrevoávamos o mar em círculos. Ainda houve alguém que perguntasse se entre nós havia algum candidato à presidência...que humor! Nos dois dias que se seguiram, estava Montevidéu assim, ensolarada. É a primeira vez que saio do país. OBS: não era o mar,era um rio enorme.