Para onde vão
os corpos negros que dançam?
—ENTREVISTA—
Por Carmélia Aragão
Handré Garcia, além de um grande amigo, também é
bailarino e mestre em Literatura pela PUC-Rio onde atualmente iniciou seu doutorado.
Handré também dá vida à Drag Queen Dorothée Odille Duplait. Começamos a conversar no Messenger sobre dança e balé clássico. Ao reler a conversa percebi que as questões postas
não diziam respeito apenas ao Handré, mas a muitos bailarinxs negros que
tiveram que desistir da carreira para tomar outro rumo onde a cor e a origem
não interferissem tanto na vida profissional.
Carmélia Aragão: Me diz uma coisa, de que
material é feita a sapatilha da bailarina, no balé clássico? É a mesma
sapatilha também para os homens?
Handré Garcia: Não, as
sapatilhas de ponta [das meninas] são feitas de tecido e gesso. Os homens usam
sapatilhas de meia ponta, feitas de tecido (lona, couro ou napa)
Carmélia Aragão: Não sabia!
Handré Garcia: As sapatilhas
evoluíram muito com o tempo.
Carmélia Aragão: Gesso? Por isso tem
uma moça [no vídeo que você me enviou] apontando a sapatilha![Segue o link:
https://www.youtube.com/watch?v=7KHuDHfFApo]
Handré Garcia: Isso! É preciso
apontar para ficarem ásperas e não escorregarem, enquanto a bailarina dança. No
piso frio, escorrega muito. As primeiras foram feitas de madeira e até de papal
marche.
Carmélia Aragão: É como o
treinamento de uma gueixa.
Handré Garcia: É uma tortura, amiga!
Te digo por experiência própria
Carmélia Aragão: Você usava isso?
Uma “sapatilhada” é mortal, como uma arma!
Handré Garcia: Eu usei por
muito tempo! Nunca tive um pé bonito, como se diz no ballet! Bailarinxs
precisam ter colo de pé acentuados...
Carmélia Aragão: Eu jurava que
era leve.
Handré Garcia: A sapatilha é leve.
Mas é uma arma.
Carmélia Aragão: Leve com
uma pedra de gesso dentro?
Handré Garcia: A ponta (onde a
bailarina sobe) é toda de gesso.
Carmélia Aragão: estava pensando em
você porque queria escrever sobre um personagem que faz balé e você apareceu na
hora com esse vídeo sobre sapatilhas! Bicha, tu é sensitiva!
Handré
Garcia: Sou pisciana, quiridã! Esqueceu? Pois bem, no doutorado,
além de construir uma ficção, quero montar uma série de
coreografias/performances que estejam ligadas ao trânsito de corpos trans pela
cidade.
Carmélia Aragão: Você ainda tem suas
sapatilhas?
Handré
Garcia: De ponta?
Carmélia Aragão: Sim.
Handré Garcia: Tenho. Estão
surradas; perdidas aqui nas minhas coisas
Carmélia Aragão: Depois me
manda uma foto! PRECISO!!!
Handré
Garcia: Nem sei se consigo subir. Muito tempo sem
aula. Ano que vem, quero voltar. Vou voltar. Preciso, por conta da pesquisa.
Carmélia Aragão: Até eu quero
fazer. Mas não sei pra onde vai balé.
Handré
Garcia: [ele me envia um link com a anatomia da
sapatilha de ponta]
Carmélia Aragão: Estava vendo no
vídeo, os bailarinos se alongando e pensei: preciso disso pra minha vida
Handré
Garcia: É uma delícia! A dança é algo espiritual!
Minha grande mestra Hortência Móllo me fez ver a dança desse jeito. Falo dela e
me emociono.
Carmélia Aragão: Onde você fazia dança?
Handré
Garcia: Ballet Dalal Achcar
Carmélia Aragão: Onde fica, filha?
Handré Garcia: Gávea. Mas, na
época, tinha unidade em Madureira. Eu era aluna desta unidade. Com os mesmo
professores e a mesma metodologia usada na Gávea.
Carmélia Aragão: Como você fez
pra entar? Teste? Bolsa?Quem te levou pra lá?
Handré Garcia: Eu tinha bolsa.
Na época, eu queria fazer aula e, na ocasião da inauguração do Teatro Odilo
Costa, Filho, vi uma matéria no RJ TV sobre o evento e a dona Dalal foi
entrevistada. Na hora, tive um estalo! Escrevi para a bonita, pedi uma
oportunidade para realizar o meu sonho de ser bailarina. Me ofereci para pagar
as aulas com trabalhos de serviços gerais, em troca de aula. Mandei a carta e,
uma semana depois, me chega um telegrama.
Carmélia Aragão: Como foi lá?
Handré Garcia: Quando cheguei à
escola (um luxo de academia), a secretária já conhecia a minha história e me
disse que a dona Dalal se sentiu muito tocada pela minha carta e me daria uma
bolsa integral para eu realizar meu sonho.
Carmélia Aragão: Que bonito!!!
Você era a única negra lá?
Handré
Garcia: Uma das únicas
Carmélia Aragão: Nossa! Mesmo em
Madureira?
Handré
Garcia: Sim, éramos poucas...Mensalidades
caríssimas...Valores de Zona Sul.
Carmélia Aragão: Então fechou
logo e você foi pra Gávea?
Handré
Garcia: Não, fiquei por 9 anos em Madureira. Fazia cursos
de férias na Gávea.
Carmélia Aragão: Então você era
boa
Handré Garcia: Eu era
esforçada, amiga!Tudo que mais fiz nessa vida foi esforço! Fiz e faço! Depois
de 10 anos em Madureira, a unidade fechou
Carmélia Aragão: Guerreira! Mas você
deu aula, porque de vez em quando vejo alguém dizendo que foi seu aluno.
Handré Garcia: Sofrida, mas
guerreira, como a mãe loira (Verônica Costa)
Carmélia Aragão: [risos]
Handré Garcia: Percebendo que não
seria muito bem absorvida por esse mundo preconceituoso do ballet, minha grande
mestra Hortência Móllo foi me direcionando para o ensino do ballet. Ela dizia
que eu tinha um potencial enorme e que seria excelente professora. Fui
seguindo os conselhos dela e, quando menos esperava, estava dando aula pelas
academias da vida.
Carmélia Aragão: Ela ainda é
viva?
Handré Garcia: Não, morreu de câncer
no pulmão.
Carmélia Aragão: Que triste... E
dança contemporânea você chegou a fazer?
Handré
Garcia: Sim. Na Dalal, estudei balé, jazz, sapateado e
flamenco, mas me faltava algo. Sentia isso.
Carmélia Aragão: Que você acha
que era? Você se sentia insegura, sentia medo?
Handré Garcia: Me sentia incompleta.
Não me sentia totalmente livre e queria experimentar outras linguagens.
Carmélia Aragão: Ahhh...Você
acha que a Dorothée [personagem feminino de Handré] te traz mais conforto pra
poder voltar a dançar? Ela te completa?
Handré
Garcia: Como sempre fui amigo dxs professorxs,
conversei com uma professora de Jazz e manifestei a ela a minha vontade de
fazer algo diferente. A mona me conseguiu uma bolsa para fazer aula numa
academia em Copa. Lá, conheci a dança moderna e me encantei
Carmélia Aragão: E
Dorothée, ela já dançou?
Handré
Garcia: Sim. Já dancei de Dorothée em Fortaleza. Acho que a Dorothée é a bailarina que vi em muitas amigas de
turma e de espetáculos que dancei. A Dorothée é algo meio Trocadero de Monte
Carlo.
Carmélia Aragão: Amiga, você tem uma história linda!