Carmélia Aragão
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Publicado em Montevidéu em 2006, |
Levado pelo
primo, Gabriel, então com nove anos, foi ao mercadinho comprar legumes para o
jantar. Já era meio tarde e, por isso, ele pode ver a sombra de umas mulheres
enormes insinuando-se debaixode uma palmeira. O primo riu da cara admirada de
Gabriel, pois ele ainda parecia não saber que aquelas mulheres, antes, viviam compulsoriamente como homens. Para quem milita no
movimento LGBT a atitude de espanto e admiração do garotinho de nove anos, pela
primeira vez, diante de uma mulher trans e a intervenção preconceituosa e
machista do primo mais velho fazem parte do discurso disseminador da
transfobia.
No vídeo de
dedicado a este tema com uma das maiores ativistas trans do Brasil, Daniela
Andrade, divulgado no Youtube pelo Canal das Bee (projeto endossado pela
PUC-SP), os apresentadores Jéssica Tuane e Vitor Larguesa divulgam dados
alarmantes de casos de homicídios por transfobia no Brasil. Em 2011, por
exemplo, 101 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou
travestis. No mesmo período, no mundo todo – completa Jéssica – foram 248
pessoas. Ou seja, o Brasil corresponde a 40,7% dos dados mundiais em homicídios
de pessoas trans. De 2008 a 2011, foram mais 325 assassinatos segundo a base de
dados na América Latina. No entanto, Daniela Andrade nos chama atenção para a
subnotificação desses dados, pois tanto as organizações que atuam na área LGBT
como a mídia englobam os crimes por transfobia como crimes por homofobia, o que
é bastante diferente. A começar, por exemplo, pela expectativa de vida da
população trans no Brasil, que tem uma média de vida de 30 anos contra todo o
resto da população brasileira que tem uma expectativa de 78 anos. Outro dado alarmante que a ativista nos traz
é sobre a fonte de renda deste grupo no qual 90% vive da prostituição, o que o
deixa ainda mais vulnerável à violência.
Ao escrever
sobre determinado período de sua vida, é Gabriel, aquele menino de nove anos, agora
já adulto, quem nos vai descortinando os jogos de linguagem que o mundo nos
impõe rumo ao lugar comum e que, na verdade, apenas dão margem à violência
verbal e física contra as travestis e transexuais. A percepção de Gabriel sobre
esse grupo muda completamente, quando aos 21 anos, concluindo a faculdade de
letras, com problemas financeiros, aceita uma proposta de trabalho para ser
tradutor em uma ONG dirigida por travestis e transexuais, na Associação Trans
do Uruguai/ATRU, na calma e pacata, porém não menos preconceituosa Montevidéu
dos anos dois mil.
Na verdade,
Gabriel é uma criação da escritora Helena Modzelewski que realmente esteve na
situação de seu protagonista no livro A
su imagem y semejanza lançado pela editora Doble Click, em 2006 em
Montevidéu. Depois de concluir seu trabalho como tradutora para a ATRU, Helena
juntou as histórias que ouviu durante esse período e as transformou em relatos
ficcionais para trabalhar com mais liberdade a questão da transfobia. E, apesar
de terem se passado quase 10 anos entre a publicação do livro de Helena e o
vídeo da Daniela Andrade com o qual fazemos contraponto, podemos verificar que
as formas de violência expostas pela ativista no Brasil e as formas de violência
discutidas pela escritora e vivenciados pelas
travestis e transexuais do Uruguai, infelizmente são as mesmas, independente do
tempo e do lugar.
O livro tem
início com Gabriel, no presente, recordado a visão indiferente que tinha para com as travestis que trabalhavam no Bulevar Artigas.A primeira imagem construída pelo
personagem coloca-nos diante de uma vitrine, ou ainda, o ônibus e o vidro da
janela pela qual Gabriel as observa, pode também nos passar sensação de que o transporte
é uma cápsula protetora que separa as “pessoas normais” daqueles “seres” que
viviam em um mundo perigoso e completamente insignificante às nossas vidas:
Nunca havia visto um desses de perto. Quando
voltava para casa, todas as noites, no 185. Eu os observava avançando
ostentosamente sobre os carros que dobravam no Bulevar Artigas, diminuindo a
marcha para mirá-los, com suas formas sinuosas e vestes extravagantes. Todos os dias, eu fazia esse trajeto,
voltando para casa em Paso Molino, quando saía do trabalho no instituto de
inglês que ficava perto do Edifício da Liberdade. Eu sempre voltava tão exausto
que quando os olhava, na verdade, não pensava em nada. Para mim, eles estavam ali. E eram, simplesmente, parte da paisagem
Entre a
narrativa passada, que vai se desenrolando na voz do presente trazida por
Gabriel, o livro é atravessado pelas histórias de vida das transexuais, como a intolerância
da família, que culmina sempre na expulsão de casa. A intolerância da escola,
bem como das demais instituições, principal responsável pela falta de
qualificação das pessoas trans e que as jogam, automaticamente, para o mercado
sexual. E a solidão e a violência que enfrentam por estarem sempre à mercê de estranhos.
Esses capítulos então trazem o nome dessas mulheres que, algumas vezes, vão se
repetindo. As protagonistas são: Aurora, Karin, René, Tormenta/Antonia e
Fernanda. E há também dois capítulos intitulados com nome de dois homens cis,
também: Ángel e Gabriel.
Essa
sobreposição de narrativas são pontos que se cruzam para formar um texto (ou um
tecido) maior que é a grande narrativa: o encontro de Gabriel consigo mesmo, o
anúncio e a aceitação de sua identidade sexual para seus familiares e amigos, e
sua luta na causa LGBT, agora como indivíduo pertencente a essa comunidade. Com
esse tecido textual montado, a autora Helena Modzelewski ao final, nos apresenta
um quadro onde os personagens do presente e do passado se encontram para traçar
um futuro, não mais amargo, mas, sim, cheio de esperança como no capítulo Waterloo.
Esse capítulo, de início, aparece como uma
canção do grupo Abba, É uma passagem em que os personagens masculinos terão que
interpretar para uma apresentação de concurso. No entanto, Gabriel precisa para seu leitor
que Waterloo significa mais que uma canção, significa: palavras. Diz o personagem:
Que Nopoleão, o imperador, invencível nunca
havia perdido uma batalha, até que finalmente foi derrotado na Batalha de
Waterloo e que, por sua vez, estava sendo cantada com alegria pelas vozes das
intérpretes do Abba, e que tocavam, profundamente, minhas fibras interiores
que, até agora, permaneciam atrofiadas. (...)
uma história que se assemelhava ao destino do compositor: submeter-se,
entregar-se a um amor que, resistindo a tudo, termina, finalmente, derrotado.
Curiosamente, era um fracasso cantado com euforia, uma perda experimentada como
uma vitória, um padecimento sobrelevado com prazer. Certamente, não era essa a
maneira com a qual Napoleão havia encarado e vivido sua derrota, porém, a
canção se referia a “invencibilidade vencida” de um lutador que, por fim, se
havia submetido.
Ao aceitar-se, Gabirel, vê em Waterloo a luta que travou
contra si mesmo e de que, como essa derrota, representava para ele sua salvação
e seu renascimento. Talvez sejam essas páginas, ou melhor, esses, os fios mais bonitos
que a autora dispõe. Eles estão completamente soltos, ao azar, no meio da trama. São páginas sem
nome, sem indicação de capítulo e cujo narrador encontra-se diluído no
pretérito imperfeito, quer dizer, em um tempo imperfeito, em que não há passado,
nem presente e nem futuro, e onde o leitor sente-se também suspenso, ou diluído, neste
tempo angustiante e aprisionador que, mais adiante, se revela como o tempo
interior de Gabriel.
Os recursos
literários de Helena Modzelewski são, inteiramente, maduros e calculados. Ela
mostra aos críticos que sabe muito bem o que é literatura enquanto peça de um
jogo, à Cortazar, enquanto linguagem e enquanto engajamento. O que talvez seja
mais belo em sua narrativa é que, como escritora, em nenhum momento esquece-se
de dizer ao seu leitor que literatura é, sobretudo, vida. E que aqueles que
estão em seu livro também vivem, pulsantes, ao nosso lado.
Com certeza,
para somar-se aos nossos esforços e mobilização contra o preconceito, a
homofobia e a transfobia, a tradução de A
su imagen y semejanza (2006) seria de grande importância para informação e
formação de nossas novas gerações. Além de ser uma excelente obra literária.
Para conhecer um pouco mais sobre Helena Modzelewski:
Links consultados durante a escrita desta resenha:
Video contra transfobia no Canal das Bee (PUC-SP):
Para entender gêneros e transfobia:
http://www.semanaon.com.br/coluna/5/1688/para-entender-generos-e-transfobia
Matéria da Carta Capital sobre a denominação de artigo para as travestis:
Notícias das pela mídia:
Meninos do Colégio Pedro II vão à escola de saia em apoio à colega transexual:
Parlamentares propõem pensão especial para travestis na Argentina: