segunda-feira, 27 de março de 2017

FILOSOFIA POP: DESBUNDE, DZI CROQUETTES E ATIVISMO


PODCAST: FILOSOFIA POP






Murilo Ferraz, Marcos Carvalho Lopes e Carmélia Aragão recebem Handré Garcia, doutorando em literatura pela PUC do rio, mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade também pela PUC do rio, é artista bailarino filiado ao Sindicato dos Profissionais da Dança do Rio de Janeiro com experiência em Ballet Clássico e Dança Moderna, para falar sobre o Desbunde.

Contamos neste episódio com o conto “Paralelas ou A Macabéa e a Bailarina”, de Carmélia Aragão, interpretado pela atriz Maria Elisa.

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LEITURA E ÁUDIO: PARALELAS OU A MACABÉA E A BAILARINA

conto escrito para Handré Garcia

  •  Paralelas ou A Macabea e a Bailarina pertence ao o livro Para Belchior com amor (2016) organizado pelo escritor e letrista cearense Ricardo Kelmer. A coletânea reúne 14 autores que escrevem narrativas baseadas nas letras do cantor, compositor e poeta Belchior, afastado da mídia desde 2009. Belchior completa 70 anos neste mês de outubro e como homenagem surgiu o projeto "Belchior sete zero" com o lançamento da coletânea de textos. O evento aconteceu dia 07 de outubro (2016) no Theatro José de Alencar em Fortaleza. 







[ARAGÃO, Carmélia. "Paralelas ou A Macabéa e a Bailarina"in Para Belchior com amor, KELMER, Ricardo (org), 2016]

domingo, 26 de março de 2017

ENTREVISTA: DANÇA, RACISMO E ATIVISMO

Para onde vão os corpos negros que dançam?

—ENTREVISTA—


Por Carmélia Aragão




Handré Garcia, além de um grande amigo, também é bailarino e mestre em Literatura pela PUC-Rio onde atualmente iniciou seu doutorado. Handré também dá vida à Drag Queen Dorothée Odille Duplait.   Começamos a conversar no Messenger sobre dança e balé clássico. Ao reler a conversa percebi que as questões postas não diziam respeito apenas ao Handré, mas a muitos bailarinxs negros que tiveram que desistir da carreira para tomar outro rumo onde a cor e a origem não interferissem tanto na vida profissional.

Carmélia Aragão: Me diz uma coisa, de que material é feita a sapatilha da bailarina, no balé clássico? É a mesma sapatilha também para os homens?

Handré Garcia: Não, as sapatilhas de ponta [das meninas] são feitas de tecido e gesso. Os homens usam sapatilhas de meia ponta, feitas de tecido (lona, couro ou napa)

Carmélia Aragão: Não sabia!

Handré Garcia: As sapatilhas evoluíram muito com o tempo.

Carmélia Aragão: Gesso? Por isso tem uma moça [no vídeo que você me enviou] apontando a sapatilha!
[Segue o link: https://www.youtube.com/watch?v=7KHuDHfFApo]

Handré Garcia: Isso! É preciso apontar para ficarem ásperas e não escorregarem, enquanto a bailarina dança. No piso frio, escorrega muito. As primeiras foram feitas de madeira e até de papal marche.

Carmélia Aragão: É como o treinamento de uma gueixa.

Handré Garcia: É uma tortura, amiga! Te digo por experiência própria

Carmélia Aragão: Você usava isso? Uma “sapatilhada” é mortal, como uma arma!

Handré Garcia: Eu usei por muito tempo! Nunca tive um pé bonito, como se diz no ballet! Bailarinxs precisam ter colo de pé acentuados...

Carmélia Aragão: Eu jurava que era leve.

Handré Garcia: A sapatilha é leve. Mas é uma arma.

Carmélia Aragão: Leve com uma pedra de gesso dentro?

Handré Garcia: A ponta (onde a bailarina sobe) é toda de gesso.

Carmélia Aragão: estava pensando em você porque queria escrever sobre um personagem que faz balé e você apareceu na hora com esse vídeo sobre sapatilhas! Bicha, tu é sensitiva!

Handré Garcia: Sou pisciana, quiridã! Esqueceu? Pois bem, no doutorado, além de construir uma ficção, quero montar uma série de coreografias/performances que estejam ligadas ao trânsito de corpos trans pela cidade.

Carmélia Aragão: Você ainda tem suas sapatilhas?  

Handré Garcia: De ponta?

Carmélia Aragão: Sim.

Handré Garcia: Tenho. Estão surradas; perdidas aqui nas minhas coisas

Carmélia Aragão: Depois me manda uma foto! PRECISO!!!

Handré Garcia: Nem sei se consigo subir. Muito tempo sem aula. Ano que vem, quero voltar. Vou voltar. Preciso, por conta da pesquisa.

Carmélia Aragão: Até eu quero fazer. Mas não sei pra onde vai balé.

Handré Garcia: [ele me envia um link com a anatomia da sapatilha de ponta]

Carmélia Aragão: Estava vendo no vídeo, os bailarinos se alongando e pensei: preciso disso pra minha vida  

Handré Garcia: É uma delícia! A dança é algo espiritual! Minha grande mestra Hortência Móllo me fez ver a dança desse jeito. Falo dela e me emociono.

Carmélia Aragão: Onde você fazia dança?  

Handré Garcia: Ballet Dalal Achcar

Carmélia Aragão: Onde fica, filha?
 

Handré Garcia: Gávea. Mas, na época, tinha unidade em Madureira. Eu era aluna desta unidade. Com os mesmo professores e a mesma metodologia usada na Gávea.

Carmélia Aragão: Como você fez pra entar? Teste? Bolsa?Quem te levou pra lá?

Handré Garcia: Eu tinha bolsa. Na época, eu queria fazer aula e, na ocasião da inauguração do Teatro Odilo Costa, Filho, vi uma matéria no RJ TV sobre o evento e a dona Dalal foi entrevistada. Na hora, tive um estalo! Escrevi para a bonita, pedi uma oportunidade para realizar o meu sonho de ser bailarina. Me ofereci para pagar as aulas com trabalhos de serviços gerais, em troca de aula. Mandei a carta e, uma semana depois, me chega um telegrama.

Carmélia Aragão: Como foi lá?

Handré Garcia: Quando cheguei à escola (um luxo de academia), a secretária já conhecia a minha história e me disse que a dona Dalal se sentiu muito tocada pela minha carta e me daria uma bolsa integral para eu realizar meu sonho.

Carmélia Aragão: Que bonito!!! Você era a única negra lá?  

Handré Garcia: Uma das únicas

Carmélia Aragão: Nossa! Mesmo em Madureira?

Handré Garcia: Sim, éramos poucas...Mensalidades caríssimas...Valores de Zona Sul.

Carmélia Aragão: Então fechou logo e você foi pra Gávea?  

Handré Garcia: Não, fiquei por 9 anos em Madureira. Fazia cursos de férias na Gávea.
 
Carmélia Aragão: Então você era boa

Handré Garcia: Eu era esforçada, amiga!Tudo que mais fiz nessa vida foi esforço! Fiz e faço! Depois de 10 anos em Madureira, a unidade fechou

Carmélia Aragão: Guerreira! Mas você deu aula, porque de vez em quando vejo alguém dizendo que foi seu aluno.

Handré Garcia: Sofrida, mas guerreira, como a mãe loira (Verônica Costa)

Carmélia Aragão: [risos]

Handré Garcia: Percebendo que não seria muito bem absorvida por esse mundo preconceituoso do ballet, minha grande mestra Hortência Móllo foi me direcionando para o ensino do ballet. Ela dizia que eu tinha um potencial enorme e que seria excelente professora. Fui seguindo os conselhos dela e, quando menos esperava, estava dando aula pelas academias da vida.

Carmélia Aragão: Ela ainda é viva?

Handré Garcia: Não, morreu de câncer no pulmão.

Carmélia Aragão: Que triste... E dança contemporânea você chegou a fazer?  

Handré Garcia: Sim. Na Dalal, estudei balé, jazz, sapateado e flamenco, mas me faltava algo. Sentia isso.

Carmélia Aragão: Que você acha que era? Você se sentia insegura, sentia medo?

Handré Garcia: Me sentia incompleta. Não me sentia totalmente livre e queria experimentar outras linguagens.

Carmélia Aragão: Ahhh...Você acha que a Dorothée [personagem feminino de Handré] te traz mais conforto pra poder voltar a dançar? Ela te completa?
  
Handré Garcia: Como sempre fui amigo dxs professorxs, conversei com uma professora de Jazz e manifestei a ela a minha vontade de fazer algo diferente. A mona me conseguiu uma bolsa para fazer aula numa academia em Copa. Lá, conheci a dança moderna e me encantei

Carmélia Aragão:  E Dorothée, ela já dançou?  

Handré Garcia: Sim. Já dancei de Dorothée em  Fortaleza. Acho que a Dorothée é a bailarina que vi em muitas amigas de turma e de espetáculos que dancei. A Dorothée é algo meio Trocadero de Monte Carlo.

Carmélia Aragão: Amiga, você tem uma história linda!


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

O que é um nome?



Este blog nasceu com o título "Em cima das árvores", mas com esse domínio mesmo que tem meu nome, depois explico o porquê. O título era uma referência clara ao Barão nas Árvores do Calvino, um de meus livros prediletos, além de indicar um determinado tipo de postura que eu gostaria de ter tomado naquele ano. Não tomei. E lá se foram vinte e poucos posts...

emcimadasarvores, primeira postagem em 2013.

Também deixei outros blogs pelo caminho... Alguns me fazem muita falta como a parceria do " O que dizem sobre ela" com meu melhor amigo e  também melhor leitor Marco Ribeiro. Um blog "anônimo", espero que Marco me perdoe, sobre uma personagem fictícia  cujo nome nem a origem  sabíamos. Revezávamos as postagens com depoimentos de outros personagens acerca "dela".
Essa saudade, nem me fale... segue nossa primeira postagem, não lembro mais quem escreveu...

oquedizemsobreela, parceria ficcional de 2007 a 2008.
Outra parceria foi com  Fernanda Lym  em "Ideias Adulteradas" de 2010. O tema era o cotidiano. Na época,  não me sentia muito à vontade pra escrever,  tinha acabado de chegar ao Rio. Revendo agora, percebo que era bacana falar sobre as matérias da  faculdade, as ruas do Rio, os livros. Tudo muito novo. Adoro minhas postagens sobre Reinaldo Arenas...

ideiasadulteradas, parceria com Fernanda Lym, esqueci a senha!

"Cuadernos" foi recente. Foi a tentativa de falar sobre o que vivi em Montevideo durante o intercâmbio pelo Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior/ PDSE.  Cinco meses passados com Helena e a angústia, sim, de ser verdadeiramente estrangeira sem ajuda de Clarice Lispector.  Foi muito bom, ainda mais porque aprendi que podemos fazer novas amizades depois dos 30...
Helena, Debora, Florencia, Christina, Handré, Javier, Gastón...

Cuadernos, sozinha em Montevideo, 2014.

Agora, começa uma nova fase...
Acho que "Cuadernos" cumpriu sua função.
Pelo menos, tive o cuidado, desta vez, de registrar um domínio com meu nome para melhor adaptá-lo as minhas "febres loucas e breves"...
Vão-se os títulos, mas fica o domínio.
Não quero mais blogs perdidos, parcerias desfeitas, senhas esquecidas...

Xô!!!

Então, fica para 2015:

Travessia.

Quem sabe,




quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

OS BASTIDORES: O QUE A GENTE ESCREVE ANTES DE ESCREVER


  HELENA


Caiu nas mãos do poeta Augusto Frederico Schmidt, assessor no governo JK, um surpreendente relatório de prestação de contas do município de Palmeira dos índios –AL. Reza a lenda que o autor do relatório recebeu uma solicitação urgente do poeta para que lhe fosse enviado o romance que este estaria guardando. E foi assim que Graciliano Ramos saiu da gaveta. 
Com Helena em Cerro, dia 09/12/2014. (Nossa única foto, acho)

Mais de 50 anos depois, eles não sabem, não há mais tempo para tanto. Não há mais tempo para tecer um começo.  Meu assunto com Helena era apenas um Sim ou Não. Enviei-lhe um email no dia 13 de janeiro, perguntando se ela poderia me orientar no Programa de Doutorado Sanduíche no Exterior, no caso, Uruguai, e junto seguiram meu currículo e um artigo. Ela me respondeu. No dia seguinte. Então: (re)conheci Helena. Agora estou há cinco meses com ela aqui, em Montevidéu. Também estou a duas semanas de voltar para casa. E sei, sinceramente, que seria melhor para ambas, se eu iniciasse esse texto como deveria ser: uma resenha sobre o romance de Helena. Mas cada letra escrita me faz pensar que tenho o poder de multiplicá-la Escrevendo infinitamente histórias de começos. De escritores. De gente apenas. Helena, estou há dias tentando colocar toda areia do Mar Del Plata numa garrafinha pet. 




segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

LITERATURA CONTRA TRANSFOBIA: ROMANCE DE PROFESSORA URUGUAIA SOBRE TRANSEXUAIS- DICA PARA TRADUZIR

A SU IMAGEN Y SEMEJANZA
RESENHA

Carmélia Aragão

Publicado em Montevidéu, 2006.
Levado pelo primo, Gabriel, então com nove anos, foi ao mercadinho comprar legumes para o jantar. Já era meio tarde e, por isso, ele pode ver a sombra de umas mulheres enormes insinuando-se debaixo de uma palmeira. O primo riu da cara admirada de Gabriel, pois ele ainda parecia não saber que aquelas mulheres, antes, viviam compulsoriamente como homens.  Para quem milita no movimento LGBT a atitude de espanto e admiração do garotinho de nove anos, pela primeira vez, diante de uma mulher trans e a intervenção preconceituosa e machista do primo mais velho fazem parte do discurso disseminador da transfobia.

No vídeo de dedicado a este tema com uma das maiores ativistas trans do Brasil, Daniela Andrade, divulgado no Youtube pelo Canal das Bee (projeto endossado pela PUC-SP), os apresentadores Jéssica Tuane e Vitor Larguesa divulgam dados alarmantes de casos de homicídios por transfobia no Brasil. Em 2011, por exemplo, 101 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis. No mesmo período, no mundo todo – completa Jéssica – foram 248 pessoas. Ou seja, o Brasil corresponde a 40,7% dos dados mundiais em homicídios de pessoas trans. De 2008 a 2011, foram mais 325 assassinatos segundo a base de dados na América Latina. No entanto, Daniela Andrade nos chama atenção para a subnotificação desses dados, pois tanto as organizações que atuam na área LGBT como a mídia englobam os crimes por transfobia como crimes por homofobia, o que é bastante diferente. A começar, por exemplo, pela expectativa de vida da população trans no Brasil, que tem uma média de vida de 30 anos contra todo o resto da população brasileira que tem uma expectativa de 78 anos.  Outro dado alarmante que a ativista nos traz é sobre a fonte de renda deste grupo no qual 90% vive da prostituição, o que o deixa ainda mais vulnerável à violência.

Ao escrever sobre determinado período de sua vida, é Gabriel, aquele menino de nove anos, agora já adulto, quem nos vai descortinando os jogos de linguagem que o mundo nos impõe rumo ao lugar comum e que, na verdade, apenas dão margem à violência verbal e física contra as travestis e transexuais. A percepção de Gabriel sobre esse grupo muda completamente, quando aos 21 anos, concluindo a faculdade de letras, com problemas financeiros, aceita uma proposta de trabalho para ser tradutor em uma ONG dirigida por travestis e transexuais, na Associação Trans do Uruguai/ATRU, na calma e pacata, porém não menos preconceituosa Montevidéu dos anos dois mil.

Na verdade, Gabriel é uma criação da escritora Helena Modzelewski que realmente esteve na situação de seu protagonista no livro A su imagem y semejanza lançado pela editora Doble Click, em 2006 em Montevidéu. Depois de concluir seu trabalho como tradutora para a ATRU, Helena juntou as histórias que ouviu durante esse período e as transformou em relatos ficcionais para trabalhar com mais liberdade a questão da transfobia. E, apesar de terem se passado quase 10 anos entre a publicação do livro de Helena e o vídeo da Daniela Andrade com o qual fazemos contraponto, podemos verificar que as formas de violência expostas pela ativista no Brasil e as formas de violência discutidas pela escritora  e vivenciados pelas travestis e transexuais do Uruguai, infelizmente são as mesmas, independente do tempo e do lugar.

O livro tem início com Gabriel, no presente, recordado a visão indiferente que tinha para com as travestis que trabalhavam no Bulevar Artigas.A primeira imagem construída pelo personagem coloca-nos diante de uma vitrine, ou ainda, o ônibus e o vidro da janela pela qual Gabriel as observa, pode também nos passar sensação de que o transporte é uma cápsula protetora que separa as “pessoas normais” daqueles “seres” que viviam em um mundo perigoso e completamente insignificante às nossas vidas:

  Nunca havia visto um desses de perto. Quando voltava para casa, todas as noites, no 185. Eu os observava avançando ostentosamente sobre os carros que dobravam no Bulevar Artigas, diminuindo a marcha para mirá-los, com suas formas sinuosas e vestes extravagantesTodos os dias, eu fazia esse trajeto, voltando para casa em Paso Molino, quando saía do trabalho no instituto de inglês que ficava perto do Edifício da Liberdade. Eu sempre voltava tão exausto que quando os olhava, na verdade, não pensava em nada.  Para mim, eles estavam ali.  E eram, simplesmente, parte da paisagem[1]

Entre a narrativa passada, que vai se desenrolando na voz do presente trazida por Gabriel, o livro é atravessado pelas histórias de vida das transexuais, como a intolerância da família, que culmina sempre na expulsão de casa. A intolerância da escola, bem como das demais instituições, principal responsável pela falta de qualificação das pessoas trans e que as jogam, automaticamente, para o mercado sexual. E a solidão e a violência que enfrentam por estarem sempre à mercê de estranhos. Esses capítulos então trazem o nome dessas mulheres que, algumas vezes, vão se repetindo. As protagonistas são: Aurora, Karin, René, Tormenta/Antonia e Fernanda. E há também dois capítulos intitulados com nome de dois homens cis, também: Ángel e Gabriel.

Essa sobreposição de narrativas são pontos que se cruzam para formar um texto (ou um tecido) maior que é a grande narrativa: o encontro de Gabriel consigo mesmo, o anúncio e a aceitação de sua identidade sexual para seus familiares e amigos, e sua luta na causa LGBT, agora como indivíduo pertencente a essa comunidade. Com esse tecido textual montado, a autora Helena Modzelewski ao final, nos apresenta um quadro onde os personagens do presente e do passado se encontram para traçar um futuro, não mais amargo, mas, sim, cheio de esperança  como no capítulo Waterloo.

Esse capítulo, de início, aparece como uma canção do grupo Abba, É uma passagem em que os personagens masculinos terão que interpretar para uma apresentação de concurso. No entanto, Gabriel precisa para seu leitor que Waterloo significa mais que uma canção, significa: palavras. Diz o personagem: 

Que Nopoleão, o imperador, invencível nunca havia perdido uma batalha, até que finalmente foi derrotado na Batalha de Waterloo e que, por sua vez, estava sendo cantada com alegria pelas vozes das intérpretes do Abba, e que tocavam, profundamente, minhas fibras interiores que, até agora, permaneciam atrofiadas. (...) uma história que se assemelhava ao destino do compositor: submeter-se, entregar-se a um amor que, resistindo a tudo, termina, finalmente, derrotado. Curiosamente, era um fracasso cantado com euforia, uma perda experimentada como uma vitória, um padecimento sobrelevado com prazer. Certamente, não era essa a maneira com a qual Napoleão havia encarado e vivido sua derrota, porém, a canção se referia a “invencibilidade vencida” de um lutador que, por fim, se havia submetido[2].

Ao  aceitar-se, Gabirel, vê em Waterloo a luta que travou contra si mesmo e de que, como essa derrota, representava para ele sua salvação e seu renascimento. Talvez sejam essas páginas, ou melhor,  esses, os fios mais bonitos que a autora dispõe.  Eles estão completamente soltos, ao azar, no meio da trama. São páginas sem nome, sem indicação de capítulo e cujo narrador encontra-se diluído no pretérito imperfeito, quer dizer, em um tempo imperfeito, em que não há passado, nem presente e nem futuro, e onde o leitor sente-se também suspenso, ou diluído, neste tempo angustiante e aprisionador que, mais adiante, se revela como o tempo interior de Gabriel.

Os recursos literários de Helena Modzelewski são, inteiramente, maduros e calculados. Ela mostra aos críticos que sabe muito bem o que é literatura enquanto peça de um jogo, à Cortazar, enquanto linguagem e enquanto engajamento. O que talvez seja mais belo em sua narrativa é que, como escritora, em nenhum momento esquece-se de dizer ao seu leitor que literatura é, sobretudo, vida. E que aqueles que estão em seu livro também vivem, pulsantes, ao nosso lado.

Com certeza, para somar-se aos nossos esforços e mobilização contra o preconceito, a homofobia e a transfobia, a tradução de A su imagen y semejanza (2006) seria de grande importância para informação e formação de nossas novas gerações. Além de ser uma excelente obra literária.


Para conhecer um pouco mais sobre Helena Modzelewski:


Links consultados durante a escrita desta resenha:

Video contra transfobia no Canal das Bee (PUC-SP): 

Para entender gêneros e transfobia:
http://www.semanaon.com.br/coluna/5/1688/para-entender-generos-e-transfobia

Matéria da Carta Capital sobre a denominação de artigo para as travestis:

Notícias das pela mídia:

Meninos do Colégio Pedro II vão à escola de saia em apoio à colega transexual:

Parlamentares propõem pensão especial para travestis na Argentina:




[1] Tradução minha, página 7.
[2] Tradução minha, p.179-180

domingo, 7 de dezembro de 2014

Proposta de tradução: A su imagen y semejanza (2006)



Carmélia Aragão



Publicado em Montevidéu em 2006, 
Levado pelo primo, Gabriel, então com nove anos, foi ao mercadinho comprar legumes para o jantar. Já era meio tarde e, por isso, ele pode ver a sombra de umas mulheres enormes insinuando-se debaixode uma palmeira. O primo riu da cara admirada de Gabriel, pois ele ainda parecia não saber que aquelas mulheres, antes, viviam compulsoriamente como homens.  Para quem milita no movimento LGBT a atitude de espanto e admiração do garotinho de nove anos, pela primeira vez, diante de uma mulher trans e a intervenção preconceituosa e machista do primo mais velho fazem parte do discurso disseminador da transfobia.

No vídeo de dedicado a este tema com uma das maiores ativistas trans do Brasil, Daniela Andrade, divulgado no Youtube pelo Canal das Bee (projeto endossado pela PUC-SP), os apresentadores Jéssica Tuane e Vitor Larguesa divulgam dados alarmantes de casos de homicídios por transfobia no Brasil. Em 2011, por exemplo, 101 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis. No mesmo período, no mundo todo – completa Jéssica – foram 248 pessoas. Ou seja, o Brasil corresponde a 40,7% dos dados mundiais em homicídios de pessoas trans. De 2008 a 2011, foram mais 325 assassinatos segundo a base de dados na América Latina. No entanto, Daniela Andrade nos chama atenção para a subnotificação desses dados, pois tanto as organizações que atuam na área LGBT como a mídia englobam os crimes por transfobia como crimes por homofobia, o que é bastante diferente. A começar, por exemplo, pela expectativa de vida da população trans no Brasil, que tem uma média de vida de 30 anos contra todo o resto da população brasileira que tem uma expectativa de 78 anos.  Outro dado alarmante que a ativista nos traz é sobre a fonte de renda deste grupo no qual 90% vive da prostituição, o que o deixa ainda mais vulnerável à violência.

Ao escrever sobre determinado período de sua vida, é Gabriel, aquele menino de nove anos, agora já adulto, quem nos vai descortinando os jogos de linguagem que o mundo nos impõe rumo ao lugar comum e que, na verdade, apenas dão margem à violência verbal e física contra as travestis e transexuais. A percepção de Gabriel sobre esse grupo muda completamente, quando aos 21 anos, concluindo a faculdade de letras, com problemas financeiros, aceita uma proposta de trabalho para ser tradutor em uma ONG dirigida por travestis e transexuais, na Associação Trans do Uruguai/ATRU, na calma e pacata, porém não menos preconceituosa Montevidéu dos anos dois mil.

Na verdade, Gabriel é uma criação da escritora Helena Modzelewski que realmente esteve na situação de seu protagonista no livro A su imagem y semejanza lançado pela editora Doble Click, em 2006 em Montevidéu. Depois de concluir seu trabalho como tradutora para a ATRU, Helena juntou as histórias que ouviu durante esse período e as transformou em relatos ficcionais para trabalhar com mais liberdade a questão da transfobia. E, apesar de terem se passado quase 10 anos entre a publicação do livro de Helena e o vídeo da Daniela Andrade com o qual fazemos contraponto, podemos verificar que as formas de violência expostas pela ativista no Brasil e as formas de violência discutidas pela escritora  e vivenciados pelas travestis e transexuais do Uruguai, infelizmente são as mesmas, independente do tempo e do lugar.

O livro tem início com Gabriel, no presente, recordado a visão indiferente que tinha para com as travestis que trabalhavam no Bulevar Artigas.A primeira imagem construída pelo personagem coloca-nos diante de uma vitrine, ou ainda, o ônibus e o vidro da janela pela qual Gabriel as observa, pode também nos passar sensação de que o transporte é uma cápsula protetora que separa as “pessoas normais” daqueles “seres” que viviam em um mundo perigoso e completamente insignificante às nossas vidas:

  Nunca havia visto um desses de perto. Quando voltava para casa, todas as noites, no 185. Eu os observava avançando ostentosamente sobre os carros que dobravam no Bulevar Artigas, diminuindo a marcha para mirá-los, com suas formas sinuosas e vestes extravagantes. Todos os dias, eu fazia esse trajeto, voltando para casa em Paso Molino, quando saía do trabalho no instituto de inglês que ficava perto do Edifício da Liberdade. Eu sempre voltava tão exausto que quando os olhava, na verdade, não pensava em nada.  Para mim, eles estavam ali.  E eram, simplesmente, parte da paisagem[1]

Entre a narrativa passada, que vai se desenrolando na voz do presente trazida por Gabriel, o livro é atravessado pelas histórias de vida das transexuais, como a intolerância da família, que culmina sempre na expulsão de casa. A intolerância da escola, bem como das demais instituições, principal responsável pela falta de qualificação das pessoas trans e que as jogam, automaticamente, para o mercado sexual. E a solidão e a violência que enfrentam por estarem sempre à mercê de estranhos. Esses capítulos então trazem o nome dessas mulheres que, algumas vezes, vão se repetindo. As protagonistas são: Aurora, Karin, René, Tormenta/Antonia e Fernanda. E há também dois capítulos intitulados com nome de dois homens cis, também: Ángel e Gabriel.

Essa sobreposição de narrativas são pontos que se cruzam para formar um texto (ou um tecido) maior que é a grande narrativa: o encontro de Gabriel consigo mesmo, o anúncio e a aceitação de sua identidade sexual para seus familiares e amigos, e sua luta na causa LGBT, agora como indivíduo pertencente a essa comunidade. Com esse tecido textual montado, a autora Helena Modzelewski ao final, nos apresenta um quadro onde os personagens do presente e do passado se encontram para traçar um futuro, não mais amargo, mas, sim, cheio de esperança  como no capítulo Waterloo.

Esse capítulo, de início, aparece como uma canção do grupo Abba, É uma passagem em que os personagens masculinos terão que interpretar para uma apresentação de concurso. No entanto, Gabriel precisa para seu leitor que Waterloo significa mais que uma canção, significa: palavras. Diz o personagem: 

Que Nopoleão, o imperador, invencível nunca havia perdido uma batalha, até que finalmente foi derrotado na Batalha de Waterloo e que, por sua vez, estava sendo cantada com alegria pelas vozes das intérpretes do Abba, e que tocavam, profundamente, minhas fibras interiores que, até agora, permaneciam atrofiadas. (...) uma história que se assemelhava ao destino do compositor: submeter-se, entregar-se a um amor que, resistindo a tudo, termina, finalmente, derrotado. Curiosamente, era um fracasso cantado com euforia, uma perda experimentada como uma vitória, um padecimento sobrelevado com prazer. Certamente, não era essa a maneira com a qual Napoleão havia encarado e vivido sua derrota, porém, a canção se referia a “invencibilidade vencida” de um lutador que, por fim, se havia submetido[2].

Ao  aceitar-se, Gabirel, vê em Waterloo a luta que travou contra si mesmo e de que, como essa derrota, representava para ele sua salvação e seu renascimento. Talvez sejam essas páginas, ou melhor,  esses, os fios mais bonitos que a autora dispõe.  Eles estão completamente soltos, ao azar, no meio da trama. São páginas sem nome, sem indicação de capítulo e cujo narrador encontra-se diluído no pretérito imperfeito, quer dizer, em um tempo imperfeito, em que não há passado, nem presente e nem futuro, e onde o leitor sente-se também suspenso, ou diluído, neste tempo angustiante e aprisionador que, mais adiante, se revela como o tempo interior de Gabriel.

Os recursos literários de Helena Modzelewski são, inteiramente, maduros e calculados. Ela mostra aos críticos que sabe muito bem o que é literatura enquanto peça de um jogo, à Cortazar, enquanto linguagem e enquanto engajamento. O que talvez seja mais belo em sua narrativa é que, como escritora, em nenhum momento esquece-se de dizer ao seu leitor que literatura é, sobretudo, vida. E que aqueles que estão em seu livro também vivem, pulsantes, ao nosso lado.

Com certeza, para somar-se aos nossos esforços e mobilização contra o preconceito, a homofobia e a transfobia, a tradução de A su imagen y semejanza (2006) seria de grande importância para informação e formação de nossas novas gerações. Além de ser uma excelente obra literária.


Para conhecer um pouco mais sobre Helena Modzelewski:


Links consultados durante a escrita desta resenha:

Video contra transfobia no Canal das Bee (PUC-SP): 

Para entender gêneros e transfobia:
http://www.semanaon.com.br/coluna/5/1688/para-entender-generos-e-transfobia

Matéria da Carta Capital sobre a denominação de artigo para as travestis:

Notícias das pela mídia:

Meninos do Colégio Pedro II vão à escola de saia em apoio à colega transexual:

Parlamentares propõem pensão especial para travestis na Argentina:




[1] Tradução minha, página 7.
[2] Tradução minha, p.179-180