domingo, 7 de dezembro de 2014

Proposta de tradução: A su imagen y semejanza (2006)



Carmélia Aragão



Publicado em Montevidéu em 2006, 
Levado pelo primo, Gabriel, então com nove anos, foi ao mercadinho comprar legumes para o jantar. Já era meio tarde e, por isso, ele pode ver a sombra de umas mulheres enormes insinuando-se debaixode uma palmeira. O primo riu da cara admirada de Gabriel, pois ele ainda parecia não saber que aquelas mulheres, antes, viviam compulsoriamente como homens.  Para quem milita no movimento LGBT a atitude de espanto e admiração do garotinho de nove anos, pela primeira vez, diante de uma mulher trans e a intervenção preconceituosa e machista do primo mais velho fazem parte do discurso disseminador da transfobia.

No vídeo de dedicado a este tema com uma das maiores ativistas trans do Brasil, Daniela Andrade, divulgado no Youtube pelo Canal das Bee (projeto endossado pela PUC-SP), os apresentadores Jéssica Tuane e Vitor Larguesa divulgam dados alarmantes de casos de homicídios por transfobia no Brasil. Em 2011, por exemplo, 101 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis. No mesmo período, no mundo todo – completa Jéssica – foram 248 pessoas. Ou seja, o Brasil corresponde a 40,7% dos dados mundiais em homicídios de pessoas trans. De 2008 a 2011, foram mais 325 assassinatos segundo a base de dados na América Latina. No entanto, Daniela Andrade nos chama atenção para a subnotificação desses dados, pois tanto as organizações que atuam na área LGBT como a mídia englobam os crimes por transfobia como crimes por homofobia, o que é bastante diferente. A começar, por exemplo, pela expectativa de vida da população trans no Brasil, que tem uma média de vida de 30 anos contra todo o resto da população brasileira que tem uma expectativa de 78 anos.  Outro dado alarmante que a ativista nos traz é sobre a fonte de renda deste grupo no qual 90% vive da prostituição, o que o deixa ainda mais vulnerável à violência.

Ao escrever sobre determinado período de sua vida, é Gabriel, aquele menino de nove anos, agora já adulto, quem nos vai descortinando os jogos de linguagem que o mundo nos impõe rumo ao lugar comum e que, na verdade, apenas dão margem à violência verbal e física contra as travestis e transexuais. A percepção de Gabriel sobre esse grupo muda completamente, quando aos 21 anos, concluindo a faculdade de letras, com problemas financeiros, aceita uma proposta de trabalho para ser tradutor em uma ONG dirigida por travestis e transexuais, na Associação Trans do Uruguai/ATRU, na calma e pacata, porém não menos preconceituosa Montevidéu dos anos dois mil.

Na verdade, Gabriel é uma criação da escritora Helena Modzelewski que realmente esteve na situação de seu protagonista no livro A su imagem y semejanza lançado pela editora Doble Click, em 2006 em Montevidéu. Depois de concluir seu trabalho como tradutora para a ATRU, Helena juntou as histórias que ouviu durante esse período e as transformou em relatos ficcionais para trabalhar com mais liberdade a questão da transfobia. E, apesar de terem se passado quase 10 anos entre a publicação do livro de Helena e o vídeo da Daniela Andrade com o qual fazemos contraponto, podemos verificar que as formas de violência expostas pela ativista no Brasil e as formas de violência discutidas pela escritora  e vivenciados pelas travestis e transexuais do Uruguai, infelizmente são as mesmas, independente do tempo e do lugar.

O livro tem início com Gabriel, no presente, recordado a visão indiferente que tinha para com as travestis que trabalhavam no Bulevar Artigas.A primeira imagem construída pelo personagem coloca-nos diante de uma vitrine, ou ainda, o ônibus e o vidro da janela pela qual Gabriel as observa, pode também nos passar sensação de que o transporte é uma cápsula protetora que separa as “pessoas normais” daqueles “seres” que viviam em um mundo perigoso e completamente insignificante às nossas vidas:

  Nunca havia visto um desses de perto. Quando voltava para casa, todas as noites, no 185. Eu os observava avançando ostentosamente sobre os carros que dobravam no Bulevar Artigas, diminuindo a marcha para mirá-los, com suas formas sinuosas e vestes extravagantes. Todos os dias, eu fazia esse trajeto, voltando para casa em Paso Molino, quando saía do trabalho no instituto de inglês que ficava perto do Edifício da Liberdade. Eu sempre voltava tão exausto que quando os olhava, na verdade, não pensava em nada.  Para mim, eles estavam ali.  E eram, simplesmente, parte da paisagem[1]

Entre a narrativa passada, que vai se desenrolando na voz do presente trazida por Gabriel, o livro é atravessado pelas histórias de vida das transexuais, como a intolerância da família, que culmina sempre na expulsão de casa. A intolerância da escola, bem como das demais instituições, principal responsável pela falta de qualificação das pessoas trans e que as jogam, automaticamente, para o mercado sexual. E a solidão e a violência que enfrentam por estarem sempre à mercê de estranhos. Esses capítulos então trazem o nome dessas mulheres que, algumas vezes, vão se repetindo. As protagonistas são: Aurora, Karin, René, Tormenta/Antonia e Fernanda. E há também dois capítulos intitulados com nome de dois homens cis, também: Ángel e Gabriel.

Essa sobreposição de narrativas são pontos que se cruzam para formar um texto (ou um tecido) maior que é a grande narrativa: o encontro de Gabriel consigo mesmo, o anúncio e a aceitação de sua identidade sexual para seus familiares e amigos, e sua luta na causa LGBT, agora como indivíduo pertencente a essa comunidade. Com esse tecido textual montado, a autora Helena Modzelewski ao final, nos apresenta um quadro onde os personagens do presente e do passado se encontram para traçar um futuro, não mais amargo, mas, sim, cheio de esperança  como no capítulo Waterloo.

Esse capítulo, de início, aparece como uma canção do grupo Abba, É uma passagem em que os personagens masculinos terão que interpretar para uma apresentação de concurso. No entanto, Gabriel precisa para seu leitor que Waterloo significa mais que uma canção, significa: palavras. Diz o personagem: 

Que Nopoleão, o imperador, invencível nunca havia perdido uma batalha, até que finalmente foi derrotado na Batalha de Waterloo e que, por sua vez, estava sendo cantada com alegria pelas vozes das intérpretes do Abba, e que tocavam, profundamente, minhas fibras interiores que, até agora, permaneciam atrofiadas. (...) uma história que se assemelhava ao destino do compositor: submeter-se, entregar-se a um amor que, resistindo a tudo, termina, finalmente, derrotado. Curiosamente, era um fracasso cantado com euforia, uma perda experimentada como uma vitória, um padecimento sobrelevado com prazer. Certamente, não era essa a maneira com a qual Napoleão havia encarado e vivido sua derrota, porém, a canção se referia a “invencibilidade vencida” de um lutador que, por fim, se havia submetido[2].

Ao  aceitar-se, Gabirel, vê em Waterloo a luta que travou contra si mesmo e de que, como essa derrota, representava para ele sua salvação e seu renascimento. Talvez sejam essas páginas, ou melhor,  esses, os fios mais bonitos que a autora dispõe.  Eles estão completamente soltos, ao azar, no meio da trama. São páginas sem nome, sem indicação de capítulo e cujo narrador encontra-se diluído no pretérito imperfeito, quer dizer, em um tempo imperfeito, em que não há passado, nem presente e nem futuro, e onde o leitor sente-se também suspenso, ou diluído, neste tempo angustiante e aprisionador que, mais adiante, se revela como o tempo interior de Gabriel.

Os recursos literários de Helena Modzelewski são, inteiramente, maduros e calculados. Ela mostra aos críticos que sabe muito bem o que é literatura enquanto peça de um jogo, à Cortazar, enquanto linguagem e enquanto engajamento. O que talvez seja mais belo em sua narrativa é que, como escritora, em nenhum momento esquece-se de dizer ao seu leitor que literatura é, sobretudo, vida. E que aqueles que estão em seu livro também vivem, pulsantes, ao nosso lado.

Com certeza, para somar-se aos nossos esforços e mobilização contra o preconceito, a homofobia e a transfobia, a tradução de A su imagen y semejanza (2006) seria de grande importância para informação e formação de nossas novas gerações. Além de ser uma excelente obra literária.


Para conhecer um pouco mais sobre Helena Modzelewski:


Links consultados durante a escrita desta resenha:

Video contra transfobia no Canal das Bee (PUC-SP): 

Para entender gêneros e transfobia:
http://www.semanaon.com.br/coluna/5/1688/para-entender-generos-e-transfobia

Matéria da Carta Capital sobre a denominação de artigo para as travestis:

Notícias das pela mídia:

Meninos do Colégio Pedro II vão à escola de saia em apoio à colega transexual:

Parlamentares propõem pensão especial para travestis na Argentina:




[1] Tradução minha, página 7.
[2] Tradução minha, p.179-180

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